Nas últimas décadas, a rápida transformação digital permitiu que as empresas reinventassem completamente a maneira como trabalham e gerenciam talentos. De plataformas de videoconferência estáveis a softwares de colaboração digital, da conectividade onipresente baseada na nuvem à abordagem centrada em dados para a tomada de decisões estratégicas alimentada pela sinergia entre inteligência artificial e humana, um trabalhador imaginário dos anos 1950 certamente ficaria maravilhado com o mundo do trabalho dos dias atuais, como se saído de um episódio do Black Mirror.
Mesmo assim, foi necessária uma pandemia para realmente acelerar essa tendência e transformar a maneira como a maioria das pessoas trabalha no dia a dia, lançando mão desses aspectos fundamentais da tecnologia para mudar drasticamente a forma como encaramos os empregos e as carreiras, talvez para sempre. De fato, para aqueles que possuem a capacitação para trabalhar remotamente, a crise impulsionou uma mudança sem paralelo em direção a um trabalho mais flexível, com a possibilidade de se viver uma vida que combine melhor os aspectos profissional e familiar – tendências que sabemos que os trabalhadores desejam há algum tempo.
A tecnologia tem o potencial de ser um grande facilitador, dando às pessoas as ferramentas para permanecerem emocional e socialmente conectadas, mesmo quando em isolamento físico, e a crise tem sido o catalisador essencial para essa mudança. No início da crise, o talento literalmente saiu do prédio, e agora começamos a perceber que, em muitos lugares, é improvável que ele volte a campo. No que certamente contará como uma das mais fortes demonstrações da extraordinária capacidade humana de adaptabilidade, os trabalhadores do mundo foram capazes de permanecer produtivos mesmo em confinamento.
A Humanyze, uma empresa de tecnologia especializada em sensoriamento social (liderada por Ben Waber, do MIT, que cunhou o termo people analytics, agora amplamente usado), garimpou e-mails, bate-papos e dados de calendário anônimos de empresas para descobrir que trabalhar fora do escritório de fato estendeu o expediente do trabalhador entre 10% e 20% em média, ao mesmo tempo que reduziu o estresse e as emoções negativas relacionados ao trabalho, aumentando a confiança e o bem-estar e melhorando a comunicação com colaboradores próximos em surpreendentes 40%. Nos estágios iniciais da pandemia, a Microsoft relatou um aumento de 200% nas reuniões virtuais (extraindo dados de clientes do Microsoft Teams), com um total de 2,7 bilhões de reuniões por dia. Embora as equipes virtuais e o trabalho remoto já existissem antes da Covid-19, é provável que a colaboração geral aumente de fato quando todos estiverem remotos, com empresas como Twitter e Square anunciando que seus funcionários podem trabalhar de casa para sempre, e com indícios sugerindo que a colaboração empresarial é mais forte hoje do que antes da pandemia.
Ao esperarmos qual será a próxima novidade, não surpreende que muitas pessoas não queiram voltar ao escritório em tempo integral e, por extensão, serem obrigadas a morar perto dele, especialmente se ele existir apenas para fins simbólicos ou decorativos. Como aponta a análise global recém-publicada pelo ManpowerGroup, oito em cada dez trabalhadores desejam um trabalho mais remoto, a fim de obter uma combinação mais saudável entre vida profissional e vida privada. Sem dúvida, temos argumentado sobre os benefícios de uma força de trabalho ágil, híbrida e fluida por algum tempo, mas a pandemia marca a entrada formal na era dos nômades digitais e uma força de trabalho personalizada, em que se destacam cinco tendências (e oportunidades) a considerar:
1. A tecnologia tem aprofundado as conexões humanas: as discussões sobre novas tecnologias, como a inteligência artificial (IA), muitas vezes pintam um quadro desolador e desumanizado. Por exemplo, o autor de Sapiens: uma breve história da humanidade, Yuval Noah Harari, advertiu sobre o surgimento de uma “classe inútil” entre os seres humanos. E há alarmes exagerados sendo acionados a respeito da automação. Uma tendência mais óbvia até agora é que humanos trabalhando com, e aprimorados pela IA, quase sempre produzem melhores resultados do que humanos sem IA, ou IA sem humanos. Enquanto a crise acelerou o uso da tecnologia, permitindo a dissociação do trabalho de um “local”, essa mudança já estava ocorrendo, visto que um grande número de empresas – grandes, médias e pequenas – fazia os investimentos necessários em ferramentas de colaboração online como Zoom e Teams, contribuindo com o crescimento global superior a US$ 45 bilhões do mercado de software de colaboração (resultando em um aumento de 300% no preço das ações da Zoom desde o início da pandemia).
A tecnologia está rapidamente se tornando mais humana. Não estamos simplesmente colaborando; estamos administrando empresas, visitando familiares, frequentando casamentos e educando nossos filhos por meio da tecnologia, tornando o mundo virtual mais humano, forjando conexões digitais profundas alicerçadas em laços genuinamente humanos. A crise transformou o software de colaboração em “software de convivência”, com a Microsoft divulgando um aumento de 10% nas reuniões sociais (incluindo o “dia do pijama” ou o “dia do pet”) nos últimos meses. Tudo isso nos permite existir “no mesmo espaço e ao mesmo tempo” juntos, enquanto nós determinamos o lugar.
2. Construindo a cultura fora dos edifícios: no ano passado, quando o mundo não conseguia nem imaginar o estado atual das coisas, apresentamos nossa pesquisa intitulada What Workers Want (O que querem os trabalhadores), e um CEO de uma empresa da Fortune 500 nos perguntou: “Como é possível criar uma cultura sem estarmos no mesmo lugar”? Nossa resposta foi que a cultura não existe dentro das paredes; ela existe dentro das pessoas, então você tem que construir a cultura por meio das pessoas, não importa onde elas estejam. Deu para notar seu ceticismo; mas a pandemia provou que podemos e devemos construir a cultura a partir das salas de estar e home offices de todo o país. Os trabalhadores já sabiam disso tempos atrás. É por isso que as pessoas podem usar uma mesma tecnologia, mas experimentar o trabalho de uma maneira muito distinta quando mudam de uma empresa para outra. Essencialmente, a cultura é “como tocamos nosso barco”, isto é, a soma de comportamentos, preferências, valores e decisões padrão que tornam cada organização um habitat único, independentemente de as pessoas frequentarem um escritório ou não.
Agora os líderes de empresas também estão percebendo isso. Eles podem se concentrar na construção da cultura em qualquer lugar, evitando a microgestão, superando a política do presentismo e aprendendo a medir o que cada funcionário realmente produz e contribui para a organização com o máximo de objetividade e dados possível. Acima de tudo, ao cultivar a confiança e a justiça nas relações com os funcionários, os líderes podem aprimorar a cultura empresarial, mesmo em um mundo apenas virtual.
3. Trabalho como base da vida: nossa pesquisa ManpowerGroup mostra que a segunda preocupação dos trabalhadores na pós-crise, depois da saúde, é manter a flexibilidade. A maioria dos trabalhadores deseja trabalhar remotamente alguns dias por semana; querem um ambiente de trabalho que seja um híbrido entre trabalho e casa, e que permita um equilíbrio melhor. Mas o escritório ainda tem um papel na conexão humana. Empresas como a Ford estão aproveitando esse momento para repensar a forma como o espaço do escritório funciona. Outras estão investindo em novos hubs para as pessoas se reunirem para colaborar e socializar. Os funcionários da Geração Z estão mais otimistas em voltar ao escritório (em seus próprios termos) e veem o ambiente de trabalho principalmente como fonte de socialização e como um lugar para fazer contatos e aprender. A Geração X e os Boomers, que lideram muitas empresas hoje, apreciam a separação que o local de trabalho físico traz em suas tentativas de manter o trabalho e a casa um pouco mais separados.
É fundamental que os líderes percebam que, embora os funcionários ainda desejem ir ao escritório ocasionalmente, poucos querem frequentá-lo todos os dias. Para ocupações que precisam ser presenciais, será importante flexibilizar os horários para minimizar o deslocamento, flexibilizar o expediente para permitir que pais sejam professores em meio período e flexibilizar os dias para permitir que o trabalho seja a base da vida.
4. A tela como o grande nivelador: o ponto forte das videochamadas é que as janelinhas são todas do mesmo tamanho – e esse é um ótimo nivelador. Antes da crise, todos já havíamos participado de reuniões em que uma parte da equipe estava presencial e outra parte online. Os participantes online eram principalmente espectadores da reunião presencial. Havia uma vantagem em estar “na sala”, algo semelhante a estar no lugar certo na hora certa, e dizer a coisa certa para a pessoa certa.
Com as empresas se esforçando para aumentar a diversidade, a equidade e a inclusão, a tecnologia fornece o campo de jogo nivelado que a maioria dos grupos deseja. Além de se tornar mais difícil se envolver na política do escritório, ostentar ou gerenciar tudo através de uma reunião pelo Zoom em que todos estão vendo, a possibilidade de captar, armazenar e analisar dados de reuniões fornece às empresa fatos concretos para avaliar questões de diversidade, equidade e inclusão (DE&I) em tempo real. A análise da diversidade, incluindo uma medida do quanto pessoas de diferentes grupos falam durante as reuniões, se são incluídas ou excluídas das redes sociais informais que governam a dinâmica de poder de uma empresa e se suas ideias e comentários são bem recebidos pelo grupo , promete acelerar o progresso em uma área ainda imperfeita. Se existe um lado bom da tecnologia e da crise de saúde global foi a depuração que acabaram promovendo em muitas das políticas tóxicas e do nepotismo que corrompem o ideal meritocrático das organizações centradas no talento: é bem mais difícil “fingir estar trabalhando” quando ninguém vê você ou se importa com onde você está.
5. Talento desencadeado geograficamente: se o vírus não está confinado por fronteiras, tampouco está o talento em um mundo virtual. Durante anos o modelo foi o mesmo; quando você está interessado em contratar talentos, uma das primeiras perguntas costuma ser: “Você pode se transferir para cá?” Na maioria dos planos de talentos ao redor do mundo, esse é o maior fator limitante, pois tem restringido o avanço de carreiras e o crescimento de empresas por décadas. No entanto, mais recentemente, temos visto uma maior autonomia por parte dos talentos qualificados, em que determinam onde escolhem viver e onde contribuem para o trabalho. Os programadores de software experimentaram a primeira mudança – o trabalho seguiu o talento. Então, com um dos níveis de desemprego mais baixos já vistos no mundo no ano passado, vimos essa abertura em relação à localização se expandir para outros setores, como o setor financeiro e o de bens de consumo.
A tecnologia agora desvinculou o talento de sua localização. Indivíduos capacitados para funções com alta demanda em qualquer setor agora percebem que podem viver onde quiserem e trabalhar onde forem mais qualificados. E os empregadores agora percebem que podem encontrar os melhores talentos em qualquer lugar do mundo, desde que tenham uma conexão de internet. A ideia de que os trabalhadores precisam se deslocar fisicamente para conseguir um emprego está ultrapassada, junto com os custos de mudança de endereço. Na verdade, é bem simples: trabalhadores talentosos querem ser livres – livres de fronteiras geográficas, livres de expectativas de localização física e livres de restrições governamentais. Segundo estimativas da revista The Economist, abrir fronteiras para liberar talentos resultaria em um aumento de US$ 78 trilhões no PIB mundial: “A mão-de-obra é a mercadoria mais valiosa do mundo – no entanto, por conta de regulamentações de imigração rígidas, boa parte dela é desperdiçada”. Se a tecnologia e as mudanças culturais nas empresas permitem que as pessoas trabalhem de onde quiserem, elas liberarão talentos mesmo com as atuais leis e restrições de imigração, contrariando a recente tendência política de desacelerar a globalização em favor de políticas nacionalistas.
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Local de trabalho e funcionários agora se separaram, ao passo que trabalho, casa e escola se juntaram. A tecnologia tem afastado as pessoas dos escritórios, trazendo-as de volta ao lar em nosso país todos os dias. Estamos construindo uma cultura fora dos edifícios, com o trabalho como base da vida em um campo mais equilibrado, com talentos que podem se originar de qualquer lugar. Ao olharmos para o futuro, é hora de criarmos uma nova forma de trabalhar no longo prazo, com foco no bem-estar, na igualdade e na produtividade, que pode funcionar tanto para empregadores quanto para funcionários muito depois do fim da crise. É hora de abraçar o pool de talentos verdadeiramente global que está disponível para impulsionar o crescimento, não importa o local que essas pessoas chamam de lar.
Em suma, o pool global de talentos está diante de nós, e o talento é a nova moeda global… se as empresas tiverem a cultura, a segurança e a tecnologia para explorá-lo.
Becky Frankiewicz é Presidente da ManpowerGroup North America e especialista em mercado de trabalho. Antes de ingressar na ManpowerGroup, ela liderou uma das maiores subsidiárias da PepsiCo, a Quaker Foods North America, e foi eleita pela Fast Company uma das pessoas mais criativas do setor. Encontre-a no Twitter:@beckyfrankly.
Tomas Chamorro-Premuzic é o Cientista Chefe de Talentos da ManpowerGroup, professor de psicologia empresarial na University College London e na Columbia University, além de colaborador do Laboratório de Finanças Empresariais de Harvard. É autor do livro “Why do so many incompetent men become leaders?(and how to fix it)”, livro que embasa sua palestra no TEDx.