Mesmo depois de diversas reformas, a contabilidade das organizações permanece obscura. Confira o que você precisa saber para avaliar uma empresa com precisão.
Em um mundo perfeito, investidores, conselheiros e executivos têm plena confiança nas demonstrações financeiras das empresas. Podem contar com os números para fazer estimativas inteligentes da magnitude, do tempo e das incertezas dos fluxos de caixa futuros, além de julgar se o cálculo resultante do valor foi bem representado nos preços atuais das ações. E podem tomar decisões sábias sobre investir ou adquirir uma organização, favorecendo, assim, a alocação eficiente de capital.
Infelizmente, não é isso que acontece no mundo real, por várias razões. Primeiro, demonstrações financeiras de empresas dependem necessariamente de estimativas e julgamentos que podem estar bem fora da realidade, mesmo quando há boa-fé. Segundo, métricas financeiras padrão, destinadas a permitir comparações entre organizações, podem não ser a maneira mais precisa de julgar o valor de qualquer empresa (principalmente para organizações inovadoras em economias em rápido movimento), o que dá origem a medidas extraoficiais, com problemas próprios. Finalmente, gestores e executivos encontram, de forma rotineira, fortes incentivos para alterar, deliberadamente, as demonstrações financeiras.
No verão de 2001, publicamos um artigo nesta revista (“Tread lightly through these accounting mine fields”) projetado para ajudar os acionistas a reconhecer como os executivos usam relatórios financeiros corporativos para manipular resultados e deturpar o verdadeiro valor de suas empresas. Enron implodiu no mês seguinte, o que abriu caminho para a lei Sarbanes-Oxley nos Estados Unidos. Seis anos depois, o mundo financeiro entrou em colapso, o que levou à adoção dos regulamentos Dodd-Frank e a uma iniciativa global para reconciliar as diferenças entre Estados Unidos e regimes internacionais de contabilidade.
Apesar do conjunto de reformas, a contabilidade das empresas permanece obscura. Muitas ainda encontram maneiras de burlar o sistema em meio ao surgimento de plataformas online, o que mudou drasticamente o ambiente competitivo para todas as empresas e expôs as deficiências dos indicadores de desempenho tradicionais. Este artigo aponta a evolução mais importante de relato financeiro nos últimos anos, particularmente o impacto das novas regras que regem o reconhecimento de receitas, a proliferação persistente de medidas de desempenho não oficiais e os desafios da avaliação dos valores de ativos de forma justa.
Exploramos aqui a prática mais insidiosa (e talvez a mais destrutiva) de manipular, em relatórios financeiros, não os números, mas as decisões operacionais que os afetam, na tentativa de alcançar resultados em curto prazo. Encontrar formas de reduzir essa prática é um desafio para os profissionais de contabilidade — mas novas técnicas analíticas podem ajudar. Vamos examinar cada um desses problemas.
PROBLEMA 1
Padrões universais
Em 2002, o mundo parecia estar à beira de uma revolução da contabilidade. Uma iniciativa estava em curso para criar um único conjunto de normas internacionais de contabilidade, com o objetivo último de unir os Princípios Contábeis Geralmente Aceitos dos Estados Unidos (GAAP, na sigla em inglês) e as Normas Internacionais de Relato Financeiro (IFRS, na sigla em inglês), em processo de adoção pelos países europeus. Até 2005, todas as empresas públicas da União Europeia tinham, em teoria, abandonado suas normas locais de contabilidade em favor das IFRS. Hoje, pelo menos 110 países em todo o mundo usam o sistema de uma forma ou de outra.
Mas, em sentido amplo, a convergência estagnou e outras alterações substantivas pareciam improváveis num futuro próximo. Houve certo progresso, mas compreender o verdadeiro valor de uma organização e comparar as contas das empresas em todos os países ainda são grandes desafios.
Considere as implicações da dificuldade de conciliar GAAP e IFRS. A análise das metas de investimento, aquisições ou concorrentes, em muitos casos, ainda exige a comparação das demonstrações financeiras sob dois regimes contábeis distintos: Pfizer contra GlaxoSmithKline, Exxon contra a BP, Walmart contra Carrefour — em todos os casos, uma empresa usa GAAP, e a outra IFRS. O impacto nos resultados é quase insignificante. Tomemos como exemplo a empresa de confeitos britânica Cadbury. Um pouco antes de ser adquirida pela americana Kraft, em 2009, registrou lucros baseados em IFRS de US$ 690 milhões. Pela GAAP, esses lucros totalizaram US$ 594 milhões — quase 14% mais baixos. Da mesma forma, o retorno sobre o patrimônio da Cadbury com base na GAAP foi de 9% — um total de cinco pontos percentuais menores do que de acordo com a IFRS (14%). Essas diferenças são grandes o suficiente para mudar uma decisão de aquisição.
Para complicar ainda mais as coisas, a maneira como os regulamentos IFRS são aplicados varia muito de um país para outro. Cada um tem seu próprio sistema de regulação e suas determinações, e, em muitos lugares (principalmente nas regiões emergentes de crescimento mais rápido), o cumprimento e a aplicação são pouco eficientes. Na área de contabilidade, qualidade e independência profissional são com frequência também desiguais.
É preocupante o fato de que muitos países criaram cada um sua própria versão do sistema IFRS, impondo “carve outs” (remoção de passagens ofensivas) e “carve ins” (adições) para o padrão oficial promulgado pelo Conselho Internacional de Normas de Contabilidade (IASB, na sigla em inglês). Índia e China são exemplos notáveis. Assim, já que vários países, como Austrália e Canadá, adotaram entre eles a versão completa e não adulterada de IFRS, vale a pena verificar se uma empresa de interesse adotou uma versão encurtada ou adulterada.
PROBLEMA 2
Reconhecimento de receita
Trata-se de uma parte complicada do quebra-cabeça da regulamentação. Suponha que você venda um smartphone, um serviço de internet ou um pacote de software de US$ 30 milhões para um indivíduo ou uma empresa. O contrato para o produto ou serviço muitas vezes inclui atualizações futuras com custos que não podem ser previstos no momento da venda. Portanto, é impossível determinar o lucro da transação.
De acordo com as regras de GAAP atuais, se não houver uma maneira objetiva de medir esses valores de antemão, um negócio não pode registrar as receitas dessa venda até que todos os requisitos de atualização sejam entregues e seus custos conhecidos — o que pode demorar alguns anos. Esse regulamento tem levado algumas empresas de software a redigir contratos que contemplam atualizações de preço e outros serviços difíceis de estimar. Ao agir assim, as empresas resolvem um problema de contabilidade — mas comprometem sua capacidade de adotar uma estratégia de pacotes possível e mais atraente. O resultado é um sistema perverso em que as regras de contabilidade influenciam a maneira de fazer negócios, em vez de demonstrar o desempenho das empresas.
As deficiências de práticas de reconhecimento de receita também têm influenciado as organizações a usar cada vez mais medidas não oficiais para demonstrar o desempenho financeiro, principalmente aquelas que operam no espaço virtual. O sucesso colossal de redes sociais como Facebook, Twitter e Ren Ren, de esportes fantasia e sites de jogos como Changyou e Zynga e de mercados online como Amazon, eBay e Alibaba é prova de que as diretrizes tradicionais para o reconhecimento e a mensuração de receitas e despesas impediam essas empresas de declarar o real valor dos seus negócios nas contas reportadas. Sem surpresa, elas logo começaram a adotar formas alternativas de reportar os ganhos. Por exemplo, em 2015, o Twitter informou perda líquida GAAP de US$ 521 milhões; também ofereceu não uma, mas duas medidas de ganhos não GAAP que apresentaram renda positiva: Ebitda ajustado de US$ 557 milhões e um lucro não GAAP líquido de US$ 276 milhões.
Uma mudança no próximo ano nas regras tanto em relação a IFRS quanto a GAAP deve aliviar as deturpações de práticas de reconhecimento de receitas correntes. As novas regras permitem que as empresas que agregam produtos e serviços futuros em contratos reconheçam a receita no ano em que é obtida por meio de estimativas de custos e receitas futuras.
Como vai funcionar? Considere uma empresa que oferece um contrato de software de US$ 30 milhões composto de duas partes: software e atualizações por cinco anos. O componente de software, que custa US$ 4 milhões para ser desenvolvido, é vendido por US$ 20 milhões. As atualizações cujos custos são desconhecidos são agrupadas ao preço, com a adição de US$ 10 milhões. As regras GAAP atuais forçariam o negócio a reconhecer zero de receita para as atualizações até o fim do ano cinco, quando a informação de custo total estará disponível. Mas, de acordo com as novas regras (e sob as normas atuais de IFRS), a empresa pode estimar o custo para entregar essas mesmas atualizações para permitir o reconhecimento da receita. Se, por exemplo, ela estima os custos em US$ 5 milhões, a IFRS permitirá à organização reconhecer lucro de US$ 5 milhões espalhados uniformemente ao longo dos cinco anos.
Mas a mudança não vai eliminar completamente os problemas. Afinal, o cálculo dos custos exige que os gestores exerçam um juízo, introduzindo ainda mais uma oportunidade para cometer erros ou deliberadamente fazer estimativas de tal forma que as receitas finais fiquem mais próximas de cumprir as metas financeiras. Portanto, à medida que os novos padrões de reconhecimento de receita forem adotados, os investidores terão de examinar atentamente os pressupostos e os métodos utilizados para estimar os custos e as receitas do relatório.
PROBLEMA 3
Medidas de lucros não oficiais
Embora as medidas não oficiais de receitas sejam relativamente novas para muitos, vários tipos de organização costumavam empregar outras medidas de lucros que não IFRS e GAAP havia um bom tempo. Talvez a mais popular seja a Ebitda (ou lucros antes de juros, impostos, desvalorização e amortização), favorita entre investidores de private equity porque foi elaborada para representar rapidamente o fluxo de caixa disponível para o serviço da dívida. No setor de tecnologia, há muitas medidas não GAAP; durante a primeira onda pontocom, as empresas começaram a usar eyeball, page views e assim por diante para convencer analistas e investidores de que seus negócios tinham valor apesar da ausência de lucros (e às vezes até de receitas).
Hoje, a Sarbanes-Oxley exige que as empresas nas bolsas americanas conciliem as medidas de ganhos com as não GAAP, com exigência similar em relação a IFRS. Além disso, a SEC exige que a gestão seja capaz de suportar o raciocínio por trás, incluindo uma medida alternativa em suas divulgações financeiras. Por exemplo, uma empresa pode justificar o uso de uma medida não GAAP sob a alegação de que esta é uma exigência de um dos seus convênios de títulos.
Embora essas mudanças caminhem na direção certa, ainda não resolvem o problema. Os relatórios apresentam enormes discrepâncias. Por exemplo, em 2014, o Twitter registrou prejuízo GAAP por ação de US$ 0,96 — mas lucro não GAAP de US$ 0,34 por ação. Em 2015, a Amazon reportou lucro GAAP por ação de US$ 0,37 e não GAAP EPS de US$ 4,14. A medida alternativa produziu uma proporção relativamente modesta entre preço e lucro, de 106, em vez da surpreendente 1,192. Isto sugere que medidas não oficiais podem representar melhor os ganhos.
O perigo, no entanto, é que medidas alternativas, em geral, são idiossincráticas. Mesmo aquelas comumente utilizadas, como Ebitda, podem não permitir comparação entre empresas (ou na mesma organização de um ano para outro) por causa das diferenças incluídas ou não no cálculo. Investidores e analistas devem continuar a tomar muito cuidado na interpretação de medidas de lucros não oficiais e analisar atentamente explicações corporativas que podem depender do uso (ou abuso) do julgamento gerencial.
PROBLEMA 4
Contabilização do valor justo
Executivos e investidores têm duas medidas à disposição para determinar o valor dos ativos de uma empresa: o preço originalmente pago (ou seja, o custo de aquisição ou histórico) e o valor que esses ativos trariam se fossem vendidos hoje (valor justo).
Há 25 anos aproximadamente, antes do surgimento da internet, as demonstrações financeiras das empresas se baseavam na anterior, que tinha a importante qualidade de ser facilmente verificável. Hoje, no entanto, as organizações utilizam o justo valor para um número crescente de classes de ativos na esperança de que um exame dos balanços possa produzir uma imagem mais fiel da realidade econômica atual. Mas, uma vez que nem todos concordam com o “valor justo”, a medida ganhou grande carga de subjetividade no processo de informação financeira, criando novos desafios tanto para quem prepara como para quem utiliza demonstrações financeiras.
Quando a crise financeira de 2008 se acirrou, uma infinidade de adaptações dos métodos de aplicação de valor justo foi adotada pelo U.S. Financial Accounting Standards Board, SEC, IASB e Public Company Accounting Oversight Board — uma corporação sem fins lucrativos criada pela Lei Sarbanes-Oxley para supervisionar as auditorias das empresas públicas. O objetivo era orientar os auditores sobre como verificar o valor justo, mas a confusão tem sido cada vez maior. O processo de medição é complexo, muitas vezes altamente subjetivo e controverso.
Vejamos o tratamento contábil dos títulos gregos por bancos europeus em 2011, durante um dos fluxos aparentemente intermináveis de crises relativas à dívida pública da Grécia. A baixa de ativos dos títulos variava de 21% a 51% — uma discrepância marcante quando se sabe que todas as grandes instituições financeiras europeias têm acesso aos mesmos dados de mercado e são auditadas pelas mesmas quatro empresas de contabilidade. O Royal Bank of Scotland, por exemplo, identificou um débito de lucros no segundo trimestre de 2011 de £ 733 milhões, depois de uma baixa de ativos de 51% a partir do valor de balanço de £ 1,45 bilhão para a sua carteira de títulos do governo grego. Ao fazer isso, o RBS seguiu a hierarquia de valor justo de IFRS (e de GAAP), que afirma que, se os preços de mercado observáveis estão disponíveis, devem ser usados. Com base nisso, o banco escocês observou que os preços de mercado haviam caído pouco mais de metade do preço pago por esses títulos quando foram emitidos.
Enquanto isso, duas instituições financeiras francesas, BNP Paribas e CNP Assurances, analisaram os mesmos dados e escolheram reduzir os títulos a apenas 21%. Elas rejeitaram os preços de mercado com base em uma justificativa questionável: o mercado tinha pouca liquidez para fornecer uma avaliação “justa”. Em vez disso, recorreram às chamadas estimativas de valor justo “Nível 3” em um processo conhecido como marcação por modelo (em contraste com as avaliações marcação por mercado usadas pelo RBS).
Se essas dificuldades surgem com títulos negociáveis, imagine como é difícil aplicar os princípios de valor justo de forma consistente aos intangíveis, como ágio, patentes, acordos de earn-out e projetos de investigação e desenvolvimento. Para piorar as coisas, divulgações sobre como ativos intangíveis são valorizados oferecem apenas informações básicas sobre os pressupostos que geraram as estimativas. É difícil ver como a situação poderia melhorar: raramente encontramos um relatório anual SEC (10K) de 150 páginas. Se incluíssem a divulgação completa das hipóteses subjacentes às estimativas de valor justo (se fosse mesmo possível), os relatórios seriam imensos.
PROBLEMA 5
Ajeite as decisões, não os livros
Quando contadores, analistas, investidores e diretores falam sobre esquemas de contabilidade, costumam se concentrar em como os custos são acumulados nos relatórios da empresa. Os gestores podem, por exemplo, optar por aumentar a provisão — isto é, exagerar deliberadamente os gastos ou as perdas, como dívidas incobráveis ou de custos de reestruturação — para criar uma reserva falsa oculta que pode ser liberada em períodos futuros para inflar artificialmente os lucros. Ou diminuir a provisão, atrasando, de propósito, o reconhecimento de determinada despesa ou algum prejuízo no ano em curso. Nesse caso, o lucro é emprestado de períodos futuros para impulsionar os ganhos no presente.
As recentes mudanças nas regras GAAP e IFRS deixaram essas atividades menos flagrantes do que antes, embora o aumento da provisão jamais possa ser eliminado. Os gestores gostam da flexibilidade contábil das reservas ocultas. Auditores externos fazem vista grossa (dentro de limites) porque sabem que as empresas não correm risco de ser processadas por subestimar os lucros. Eles têm muito mais medo de subestimar os custos para os clientes (e, assim, exagerar nos lucros).
Em geral, os regulamentos têm enfraquecido a capacidade das empresas de manipular relatórios financeiros — assim, o esquema dos resultados mudou de lugar, aonde as regras de contabilidade terão dificuldade para chegar: tomada de decisão corporativa, que serve aos interesses dos relatórios de curto prazo, mas prejudica o desempenho de longo prazo.
Um estudo publicado no Journal of Accounting and Economics entrevistou mais de 400 executivos seniores sobre como as empresas reportavam os lucros. Os pesquisadores pediram aos executivos que imaginassem um cenário em que a organização estivesse prestes a perder a meta de lucros do trimestre. Dentro das limitações da GAAP, que escolhas poderiam fazer para atingir a meta?
O estudo revelou que os gestores tendem a manipular os resultados não pela forma como relatam o desempenho, mas cronometram suas decisões operacionais. Por exemplo, aproximadamente 80% dos entrevistados disseram que se estivessem aquém das metas de lucros, cortariam gastos discricionários (como pesquisa e desenvolvimento, publicidade, manutenção, contratação e treinamento de funcionários). Mais de 55% afirmaram que atrasariam o início de um novo projeto, mesmo que implicasse um pequeno sacrifício em valor. Quase 40% disseram que, se estivessem em perigo de perder uma meta, ofereceriam incentivos aos clientes para que comprassem mais naquele trimestre.
Os gestores elevam os números ao manipular a produção. Se uma empresa tem excesso de capacidade considerável, por exemplo, os gestores podem escolher aumentar a saída, permitindo que os custos fixos de produção sejam distribuídos por mais unidades. O resultado é redução no custo unitário e, consequentemente, diminuição nos custos de vendas e aumento nos lucros. Mas essa prática leva a altos estoques de produtos acabados, impondo à empresa um pesado fardo em troca de melhores margens em curto prazo, como mostra um estudo do setor automobilístico. Quando um grande número de carros não vendidos fica em lotes por longos períodos, coisas ruins (e onerosas) podem acontecer: para-brisas e pneus rachados, limpadores quebrados, baterias desgastadas e assim por diante. A empresa tem de elevar os gastos com marketing, reduzir preços e oferecer extras caros, como o financiamento a 0% apenas para que os clientes comprem. E o próprio ato de abaixar o preço pode sacrificar o valor da marca de um fabricante de automóveis.
O que torna estes resultados tão perturbadores não é apenas o fato de que os esquemas são comuns, mas o fato de que essas ações não violam a GAAP ou a IFRS. Executivos se sentem livres para agir com tranquilidade, e o auditor não poderá fazer objeções. Além do mais, é muito difícil detectar esse tipo de comportamento destrutivo considerando as regras de divulgação atuais.
Novas ferramentas analíticas podem ajudar
Investidores e membros do conselho entendem que manipular decisões operacionais no intuito de relatar ganhos mais elevados no curto prazo introduz um risco bem real de comprometer a competitividade no longo prazo de uma empresa. Fica claro também que, na medida em que as normas contábeis continuam a melhorar e ajudar a impedir mais fraudes contábeis (embora os incentivos para executivos alcançarem metas de curto prazo permaneçam fortes), as empresas serão cada vez mais propensas a ajeitar as decisões em vez dos livros. Assim, os investidores e os administradores terão de exigir maior divulgação sobre essas escolhas operacionais, mais suscetíveis à manipulação, a fim de determinar se são feitas por razões comerciais sólidas ou para aumentar artificialmente os resultados financeiros.
É claro que isso criará problemas práticos quanto ao volume relatado de informações e envolverá detalhes difíceis de verificar. Na verdade, os requisitos regulatórios que produzem relatórios cada vez mais longos podem ser um exercício para diminuir retornos. O que precisamos, talvez, sejam abordagens mais inteligentes para analisar os dados disponíveis. A boa notícia é que, cada vez mais, novas técnicas têm sido aplicadas por analistas e investidores.
Lei de Benford. Uma abordagem para a análise desses relatórios que recentemente conquistou mercados financeiros toma como base a Lei de Benford, sobre a distribuição de frequência de dígitos iniciais em conjuntos de dados numéricos. A lei existe há um bom tempo, mas só recentemente foi aplicada na contabilização e no setor financeiro: companhias de seguros começaram a usá-la para detectar falsas alegações; o IRS para identificar fraude fiscal; e as quatro grandes empresas de contabilidade para encontrar irregularidades contábeis.
A lei estabelece que, em listas de números de qualquer fonte de dados que ocorre naturalmente (taxas de cartão de crédito, entradas de compras, recebimentos de caixa), o primeiro dígito para cada número será 1 (por exemplo, 1, 157, 1.820), aproximadamente 30% do tempo. O primeiro dígito será 2 cerca de 18% do tempo. E cada número sucessivo representará uma proporção cada vez menor, até o ponto em que o 9 será o primeiro dígito menos de 5% das vezes. Essa distribuição foi encontrada em uma matriz praticamente ilimitada de conjuntos de dados: o comprimento dos rios (em centímetros e metros), a população de cidades e países, o volume de negociação em bolsas de valores, o número de pontos no ranking para profissionais de tênis, os pesos moleculares dos produtos químicos, a altura dos edifícios mais altos do mundo e assim por diante.
Variáveis contábeis também devem ser distribuídas de acordo com a Lei de Benford — e são, desde que não haja manipulação dos dados. Na verdade, a distribuição se mantém mesmo que os números sejam convertidos de uma moeda para outra. Se um conjunto de dados de contabilidade se desvia da Lei de Benford, isso pode ser tomado como prova de alteração.
Suponha que uma empresa de contabilidade esteja revendo as demonstrações financeiras de uma empresa. Se um número não usual elevado de primeiros dígitos nos dados contábeis for 7, 8 ou 9, isso poderá indicar um esforço consciente por parte dos gestores de alterar os números para alcançar resultados financeiros desejados.
Pistas verbais. Outra ferramenta para detectar práticas inescrupulosas surge da pesquisa de dois acadêmicos de contabilidade que analisaram as transcrições de aproximadamente 30 mil conference calls de CEOs e CFOs dos Estados Unidos entre 2003 e 2007. Os pesquisadores se basearam em estudos psicológicos que mostram como nossos padrões de fala mudam quando mentimos. Eles apontam várias pistas verbais que podem ajudar um ouvinte a identificar que algo não está certo com as contas da empresa. Por exemplo, em organizações que mais tarde foram forçadas pela SEC a fazer grandes reformulações, chefes que costumavam fazer alterações mostravam os seguintes padrões:
Raramente especificar valor para os acionistas (talvez para minimizar o risco de ação judicial).
Usar palavras positivas demais (por exemplo, em vez de descrever algo como “bom”, chamar de “fantástico”).
Evitar o uso da palavra “eu”, preferindo a terceira pessoa.
Usar menos expressões de hesitação, como “hum” e “é” (o que pode sugerir que treinaram para não errar).
Usar obscenidades com mais frequência.
É evidente que gestores que pretendem fazer alterações podem aprender a evitar esses indicadores. Mas, enquanto isso, os sinais verbais podem ser uma ferramenta útil para os membros do conselho e outras partes interessadas em identificar práticas desonestas.
Os primeiros anos. Manipular resultados financeiros é mais prevalente nos primeiros anos de mandato de um CEO e diminui ao longo do tempo, segundo estudo recente. Uma possível explicação é que os primeiros anos são o período de maior incerteza sobre sua capacidade, então ele pode distorcer os ganhos na tentativa de manter o emprego. A lição para os membros da diretoria e investidores é que devem abrir bem os olhos para as práticas de contabilidade de um executivo recém-chegado.
PARA QUE as demonstrações financeiras possam cumprir sua importante função social e econômica, devem revelar a verdade econômica subjacente de um negócio. Na medida em que se desviam da verdade, o escasso capital continuará a ser mal distribuído, e a riqueza e o emprego prejudicados.
Nunca vamos chegar a um mundo em que todos os relatórios sejam perfeitos e totalmente confiáveis, mas reconhecer suas deficiências e saber que existem novas ferramentas para detectar a manipulação pode nos ajudar a continuar a lutar por esse ideal.
Na medida em que as empresas cronometram cada vez mais as decisões operacionais para aumentar artificialmente os números de desempenho — uma prática difícil de detectar e regular —, a vigilância se torna vital.
Escrito por H. David Sherman, professor de contabilidade da D’Amore-McKim School of Business, da Northeastern University, e ex-associado na SEC Division of Corporate Finance & S. David Young, que é professor de contabilidade e controle da INSEAD.