Depois de três meses de protestos, a Chefe do Executivo de Hong Kong Carrie Lam finalmente declarou a retirada de um projeto de lei controverso que permitiria a extradição de pessoas para a China continental. Embora a lei proposta tenha sido o primeiro impulso para que mais de um milhão de residentes de Hong Kong fossem às ruas, os protestos aumentaram exponencialmente, com pedidos de abertura de inquérito para a verificação do uso da força policial , a anistia para os manifestantes presos, retratação por terem sido rotulados de “baderneiros” e o direito universal ao voto. Basicamente, os protestos evoluíram para uma maior expressão de descontentamento, com a governança da China sobre Hong Kong tendo, então, um único país e dois sistemas de governança. As manifestações pretendem continuar num futuro previsível.
As tensões entre Hong Kong e China geram desafios consideráveis para as empresas que operam no território, especialmente no que tange ao desenvolvimento dos seus negócios, retenção de talentos e liderança. Para lidar com esses desafios, os líderes precisam entender o contexto por trás das manifestações e a sua importância para os negócios. Eis aqui alguns pontos importantes para considerar:
A desigualdade e o pessimismo em relação ao futuro
Desde que Hong Kong passou a ser regida pela China em 1997, antes legislada pelos britânicos, todos os principais protestos no país se deram por conta da preocupação com a influência da China continental sobre Hong Kong. Como exemplo, em 2003, centenas de milhares de manifestantes marcharam depois de uma lei de segurança nacional ser proposta, para dificultar ainda mais as opiniões e visões anti-China (essa lei foi adiada indefinidamente). Protestos em grande escala aconteceram novamente em 2012, quando milhares de pessoas se opuseram à implementação do currículo nacional pró-China nas escolas públicas, desencadeando a sua revogação. Em seguida, em 2014, aconteceram as manifestações Occupy Central, normalmente conhecidas como a Revolução dos Guarda-Chuvas – que duraram quase três meses – e manifestantes, sem sucesso, reivindicaram um sufrágio universal para eleger a Chefe do Executivo de Hong Kong.
Enquanto o estado de direito diz respeito a protestos do passado e do presente, as questões socioeconômicas têm surgido recentemente como um outro causador de insatisfação, principalmente para os jovens. As pessoas estão insatisfeitas com a desigualdade econômica severa, os obstáculos à mobilidade social, a competição extrema na escola e no trabalho, e os preços exorbitantes para a moradia em Hong Kong – tudo isso contribui para o crescente pessimismo em relação ao futuro.
Infelizmente, nada disso é surpresa para mim, uma vez que percebo esse pessimismo entre meus alunos da University of Hong Kong. A maioria dos meus graduandos nasceu na época da transferência de Hong Kong, e desde pequenos, eles tinham de estudar muito para ingressar numa escola secundária de primeira linha e, estudar ainda mais para conseguir ingressar numa faculdade de elite para, em seguida, conseguir um bom emprego, ter uma boa condição de vida e uma moradia própria. No entanto, para muitos, essa visão está fora do alcance nos dias de hoje. Um levantamento mostrou que quase 60% dos entrevistados tinham a sensação de que as oportunidades de desenvolvimento de carreira para os jovens em Hong Kong estavam piores se comparadas às da geração dos pais.
Parte do problema se dá à desigualdade em Hong Kong. O coeficiente de Gini de Hong Kong está acima de .5, classificando-a como uma das sociedades mais desiguais do mundo desenvolvido. (Como comparação, o coeficiente de Gini dos Estados Unidos é 39, e do Japão é 34, de acordo com a OECD.) Essa desigualdade contribui para uma série de problemas, inclusive o acesso tardio à saúde, o aumento de problemas mentais, e redução das oportunidades de carreira, onde um estudo revelou que a média salarial mensal para os formados atualmente é inferior à de 1987.
Essa desigualdade é mais visível quando se trata de propriedade de imóveis. O preço dos imóveis em Hong Kong ultrapassou a renda das pessoas de tal maneira, que comprar um imóvel se tornou um desafio monumental. Quando meus alunos de administração se formarem, a maioria terá um salário mensal inicial entre US$1.900 e US$ 3 mil, enquanto o preço médio de uma residência em Hong Kong é de US$1,2 milhões. Com as condições para financiamento, em geral mais restritas em Hong Kong do que nos Estados Unidos, a maioria dos meus alunos levaria pelo menos 20 anos para economizar algum dinheiro e conseguir dar entrada numa residência; isso, partindo do princípio que os preços não subam durante esse período. Numa sociedade que somente instituiu o salário mínimo em 2011 (atualmente por volta de US$4,80 por hora), a vida é um desafio ainda maior para os trabalhadores sem diploma universitário.
A Chefe de Estado reconhece esses problemas. Quando declarou a revogação do projeto de lei, ela reconheceu que “..a insatisfação vai muito além do projeto de lei. Ele abrange problemas de caráter político, econômico e social, inclusive os costumeiros problemas relatados sobre moradia e oferta de terras, distribuição de renda, justiça social e mobilidade, além de oportunidades para nossos jovens.” Conseguir tratar essas questões com eficiência levará um tempo considerável, mas é da responsabilidade coletiva de ambos os setores público e privado de Hong Kong – que estão muito interligados – priorizar tais questões e trabalhar para restaurar a estabilidade da região.
A consolidação de Hong Kong na China
A economia de Hong Kong cresceu tão rapidamente durante a segunda metade do século 20, que chegou a representar 18% do PIB da China em 1997. No entanto, com a melhoria rápida da economia da China ao longo dos últimos 20 anos, a força da economia de Hong Kong em relação ao resto da China retraiu, tornando-a ligeiramente semelhante em peso econômico a cidades vizinhas, como Shenzhen ou Guangzhou.
É indiscutível que Hong Kong ainda atua como uma ligação para os negócios da China por conta do seu estado de direito e dos mercados de capitais robustos; entretanto, há o risco de sua singularidade diminuir à medida que se torna mais integrada à China. Iniciativas como a Área da Grande Baía, inaugurada pela China no começo desse ano para ligar Hong Kong, Macau e as cidades chinesas vizinhas dentro de um ecossistema econômico que ultrapassa o Vale do Silício, só vai continuar a aproximar Hong Kong da China.
Essa ideia de consolidação certamente preocupa os manifestantes. Quando Hong Kong foi devolvida à China continental, 50 anos de autonomia estavam nas promessas para um único país sob dois sistemas de governo, o que chegará ao fim em 2047. O ano de 2047 sempre pareceu iminente e ameaçador no futuro de Hong Kong, alimentando esperanças de que, até lá, a China já tenha se desenvolvido o suficiente a ponto de se assemelhar a Hong Kong no que tange a liberdade social e política. Nesse ponto, no entanto, o futuro é incerto.
As empresas estão sendo levadas ao caos
As manifestações causaram repercussões nos negócios em Hong Kong. Muitas das grandes empresas de Hong Kong geram grande parte de sua receita no mercado chinês, o que faz com que tenham que transitar por uma linha delicada entre os stakeholders de Hong Kong e os da China continental. Ao estar extremamente ciente da alavancagem econômica da China, Beijing exerceu pressão nas empresas em Hong Kong. Por exemplo, no início de agosto, Beijing reuniu 500 empresas e elites políticas de Hong Kong em Shenzhen para oferecer diretrizes em como apoiar o governo em meio a tantas manifestações recorrentes.
Talvez a intervenção mais explícita tenha sido a da Administração de Aviação Civil da China que proibiu funcionários da Cathay Pacific , baseada em Hong Kong, que tenham participado de manifestações, de trabalhar nos voos chineses ou até trafegar pelo seu espaço aéreo. Como consequência, ambos CEO da Cathay Pacific Rupert Hogg e seu Presidente do Conselho John Slosar pediram demissão, e a companhia aérea reduziu o número de rotas, depois de uma redução de 38% no número de passageiros com destino à China. O impacto à Cathay Pacific não é o único. Muitos setores voltados para o consumo – como viagens, turismo, hotéis, varejo e restaurantes – têm sido intensamente afetados por conta da queda no número de visitantes e do consumo local limitado.
Os mercados de capitais de Hong Kong também sofreram impactos. Normalmente, um dos maiores mercados de IPOs do mundo, muitas empresas decidiram adiar ou fazer alterações na abertura de seu capital em função das manifestações recentes. Mais notadamente, a Alibaba adiou a abertura de seu capital em Hong Kong até que a situação política melhore. Ademais, a Fitch Ratings, a agência reguladora, rebaixou levemente o risco Hong Kong com base nos últimos acontecimentos e na previsão de que “a integração contínua de Hong Kong ao sistema nacional de governança da China irá gerar grandes desafios institucionais e regulatórios ao longo do tempo.” Embora o impacto da rebaixada seja mais simbólico do que financeiro – por conta da alta classificação de crédito de Hong Kong – há uma sombra na viabilidade, em longo prazo, da classificação exclusiva de Hong Kong em ser um hub financeiro.
Além das disrupções operacionais, estratégicas e financeiras, umas das consequências não-intencionais das manifestações é o impacto que possam causar nas empresas que estão em busca e retenção de talentos. Se as causas fundamentais das manifestações não forem tratadas, e fazer negócios se torne mais difícil, muitas pessoas simplesmente irão deixar Hong Kong. Já se sabe que os serviços de imigração e empresas de mudanças estão em ampla atividade, mais do que jamais visto em anos. Consequentemente, pode ser difícil para as empresas manterem as necessidades de capital humano exigido em Hong Kong, o que poderá diminuir sua atratividade como um hub para os negócios internacionais, talvez abrindo portas para que outra cidade da Ásia surja como um centro econômico global.
O que os líderes precisam fazer
Não parece que as manifestações irão acabar. Com a chegada do Dia Nacional da China , no dia 1º de outubro, para comemorar o aniversário de 70 anos do estabelecimento da China moderna, espera-se que os manifestantes aproveitem a ocasião para fazer as suas exigências e mostrar seu descontentamento para com a influência da China continental em Hong Kong. Em novembro, Hong Kong irá sediar as eleições para o Conselho Distrital, que será definido pelo aumento no número de jovens eleitores cadastrados insatisfeitos com o projeto de lei de extradição e a falta de liderança do governo durante a crise. Como primeiras eleições desde que as manifestações começaram, os resultados servirão como uma prova de fogo para o governo da Chefe do Executivo Lam – e prováveis manifestações acontecerão.
Face à tal inquietação política, a liderança é vital. A volatilidade política parece ser a nova norma ao redor do mundo, e os líderes de empresas precisam responder pelos riscos no planejamento estratégico. Assuntos de caráter político aparentemente não relacionados ao negócio podem rapidamente se espalhar, aumentando consideravelmente o problema, como aconteceu com o Cathay Pacific.
É evidente que os líderes e as empresas terão de enfrentar decisões difíceis num ambiente operacional como esse, portanto é preciso ter um senso claro dos valores que norteiam a tomada de decisão quando uma escolha certa ou errada possa estar obscura. Como exemplo, os valores de uma organização ditam o apoio à liberdade de expressão de seus funcionários na sua vida pessoal, ou estão de acordo com requisitos mais rígidos em discursos impostos em certos mercados? Ter senso de valores e propósito podem ajudar a nortear o líder nesses dilemas.
Os líderes também precisam saber que a inquietação política de longo prazo e em larga escala gera um nível de cansaço, até mesmo para aqueles que não estão envolvidos diretamente. Saber das últimas notícias acerca do moral e da energia organizacionais – escutar sua equipe – é importante em épocas de manifestações e até um tempo depois de as manifestações terem se acalmado. Reestabelecer o tecido conjuntivo e a confiança de uma sociedade fraturada leva tempo.
David S. Lee é palestrante sênior na Faculdade de administração e economia da University of Hong Kong, onde leciona sobre ética, direito e governança corporativa. Lee é aluno ouvinte na East-West Center.
Fonte HBR