Uma coisa complicada sobre estratégia é que as boas acabam parecendo inevitáveis, o que as torna difíceis de analisar. Após o fato, temos dificuldades em distinguir a causa do efeito, ou as escolhas da sorte — e, como resultado, tiramos conclusões questionáveis desse exercício. Isso é especialmente verdadeiro quando o sucesso em questão é um caso surpreendente.
Um exemplo concreto é o Donald Trump. As racionalizações pós-factuais retrataram sua ascensão como resultado das confusões estratégicas de Hillary Clinton (campanha insuficiente no Rust Belt) e do azar (Jamey Comey). Nessa narrativa, Trump ganhou a eleição não a partir de suas próprias ações, mas porque enfrentou uma oponente particularmente incapaz. Outra linha de pensamento argumenta que a vitória de Trump se deu em função de fatores externos: a obsessão da mídia por celebridades, o grande escopo de candidatos nas primárias republicanas, a interferência dos hackersrussos e, acima de tudo,um eleitorado ávido por mudança. Os fatores aqui são muitos diferentes, mas a perspectiva é a mesma: Trump, de alguma maneira, venceu a eleição apesar de si mesmo, não por causa de algo que tenha realmente feito.
O problema de ambas as visões é que retratam o triunfo de Trump como inevitável, mas ele não era. Foi um dos tiros mais no escuro na história presidencial moderna dos EUA. Então vale a pena questionar o que foi que Trump fez, estrategicamente, que tornou isso possível.
Quando entrou na disputa, Trump tinha zero experiência política e foi criticado pelo establishment republicano. O normal nessa circunstância seria seguir o caminho do típico candidato “outsider”, aceitando as barreiras dessa categoria e tentando se distinguir suficientemente dentro dela para superar as dificuldades inerentes. Por exemplo, veja Bernie Sanders: “Sou um democrata, mas trago uma visão liberal muito mais atraente que a minha oponente, que é do establishment.” Ou Ben Carson: “Sou um republicano, mas, enquanto um cirurgião bem-sucedido, trago uma perspectiva nova.” De fato, esse comportamento era tão esperado de Trump que, durante as primárias, a mídia largamente o cobriu como o outsider clássico, ainda que ele estivesse fazendo algo radicalmente diferente.
O que ele fez foi criar, com uma consistência precisa e implacável, uma categoria completamente nova nas mentes dos eleitores: o candidato politicamente incorreto. Desde então, ele monopolizou essa categoria.
Para legitimar tal identidade, ele usou um argumento diabolicamente tautológico: Na categoria dos candidatos à presidência tradicional, os políticos são todos politicamente corretos. Quando assumem o poder, decepcionam. Portanto, você não quer um líder dessa categoria — você o quer em uma nova categoria, a dos candidatos politicamente incorretos. Eu alcancei um sucesso imenso nos negócios sendo politicamente incorreto. Assim, o politicamente correto resulta no fracasso, e o politicamente incorreto resulta em sucesso.
Não importa se ele partiu para essa estratégia de forma consciente, ou se foi o resultado de sua personalidade e de seus instintos. O resultado é o mesmo em qualquer um dos casos.
Trump utilizou a mesma tática para atrair eleitores para as primárias e eleições gerais que as empresas utilizam para atrair clientes. Os consumidores criam limites categóricos em suas mentes — por exemplo, restaurantes chineses, carros esporte, blue jeans — e dentro desses limites majoritariamente escolhem aquele produto que lhes parece mais natural, familiar e confortável. Como a mente busca simplicidade e consistência, o produto mais confortável tende a ser aquele com o qual as pessoas têm uma experiência longa e de dependência. Por exemplo, o restaurante chinês favorito de alguém é o favorito dessa pessoa porque ela foi lá mais vezes e conhece os funcionários, o cardápio e o formato com familiaridade. Eu e o ex-CEO da Proctor & Gamble, A.G. Lafley, cunhamos o termo “vantagem cumulativa” para esse fato, e ele é uma maneira subestimada de se obter liderança permanente em um mercado.
É também por isso que, sempre que Trump é politicamente incorreto — fato que ele mesmo salienta muitas vezes—, ele demonstra estar em uma categoria diferente dos outros políticos. Ao fazer isso continuamente durante a sua campanha, os eleitores passaram a vê-lo cada vez mais como alguém familiar, confortável. E assim, ele nunca se desculpa por agir dessa maneira: fazê-lo acabaria com a sua consistência, o que lhe seria desastroso.
Quando ele foi atacado por agir de forma politicamente incorretacomo criticar John McCain por ele ter sido prisioneiro de guerra, feito troça de um repórter deficiente, rogado pragas a Megyn Kelly, se recusado repetidas vezes a divulgar seus impostos, ou, mais recentemente, causado incidentes internacionais com a China e rejeitado os briefings da CIA sobre os hackers russos, a coisa politicamente correta a se fazer seria pedir desculpas e tentar se retrair diplomaticamente desses passos em falso. Mas não. Em vez de mostrar remorso, ele retomou o ataque.
Pedir desculpas o teria jogado de volta à categoria “tradicional”, onde seria um playerineficaz, como Carson ou Sanders. Em vez disso, a sequência de atitudes politicamente incorretas reforçou essa diferença e o tornou ainda mais familiar.
Durante toda a campanha, os detratores se perguntaram durante quanto tempo Trump poderia “desafiar a gravidade”. Até quando ele poderia seguir fazendo e dizendo coisas ultrajantes e escapar ileso?Só o ato de perguntar reforçava nas mentes dos eleitores que Trump pertencia a um segmento diferente e lhe deu a oportunidade de dobrar sua aposta. Quando os democratas, a mídia e mesmo os republicanos mainstreamcriticaram a Trump, isso apenas reforçou sua dominação sobre uma categoria distinta — categoria essa que ele foi capaz de expandir até conquistar a presidência.
Seus detratores perguntam por quanto tempo Trump poderá desafiar o status quo. Fazem a pergunta errada. Deveriam perguntar como o formato de sua crítica está fortalecendo Trump.
Tudo isso ilustra quatro pontos importantes sobre estratégia. Primeiro, entenda e tenha empatia pelos seus clientes. Quando eles fizerem algo que você acha absurdo, não os culpe. Eles não são dispensáveis — são os seus clientes. Não explique o porquê de eles estarem cometendo um erro terrível quando escolhem o produto do seu competidor. Entenda porque eles estão comprando e lhes dê uma razão melhor para que passem a comprar o seu.
Em segundo lugar, não subestime o seu adversário; é perigoso. Um competidor esperto vai permitir, com alegria, que a subestimação continue, e pode até incentivá-la. Trump entendeu que era essencial impedir que sua oponente entendesse sua estratégia, então trabalhou para reforçar sua cegueira, sendo politicamente incorreto sempre.
Terceiro: quanto as coisas não estão do seu jeito, não atribua culpa a acontecimentos alheios ao seu controle. Mesmo os bons estrategistas enfrentam esses problemas (e o melhores aprendem a não utilizá-los como bode expiatório). Mas, nesse caso, o que todos os democratas fizeram? Culparam a interferência russa. Mas não foi ela quem ganhou a eleição; a estratégia democrata branda interagiu com a estratégia inteligente de Trump para colocá-lo numa posição tal que, sob circunstâncias certas e pontuais, ele poderia obter uma vitória estreita.
Isso leva à lição final: a estratégia importa de verdade. Clinton executou uma campanha excessivamente competente, com muitos gestores experientes, planejamento abundante, altos níveis de investimento e atenção cuidadosa às melhores práticas. No entanto, sua estratégia não surpreendeu. Como candidata, ela vendeu aos consumidores o que desejava que eles quisessem: um produto que era atraente a ela e à sua equipe. Ela subestimou seu rival até a noite da eleição. E não há sinal de que ela ou sua equipe, mesmo agora, tenham entendido o que, de fato, aconteceu.
É claro, um crítico poderia dizer que estou caindo numa outra armadilha lógica, uma particularmente frequente no mundo da análise de estratégia administrativa: a de olhar o vencedor e dissecar as causas de seu sucesso quando ele já aconteceu, de “prever o passado”.
Então, deixe-me dizer que escrevi o rascunho inicial deste artigo no começo de março de 2016, com as primárias republicanas ainda em curso, e o enviei para um grande jornal (que o rejeitou sob o argumento de que era autopromocional). Sem me deter, fui confiante o suficiente na minha análise para pô-la a prova: em 25 de junho fiz uma aposta de US$10 mil com um colega professor em uma faculdade de administração de ponta, que Trump venceria a presidência. Se me importasse com o lado financeiro da aposta, a teria repetido em Las Vegas, mas o dinheiro não era a questão central. O ponto era que os apoiadores de Clinton não estavam vendo a ameaça direta vinda do azarão. (Após a concessão de Clinton, mandei um e-mail ao meu amigo dizendo que não queria o dinheiro. Com elegância, ele insistiu em provar do próprio remédio, e nós concordamos que ele doaria US$ 10 mil à sua caridade preferida.)
A minha visão sobre esse assunto, enquanto estrategista — e não um apoiador político ou sábio — é que a estratégia eleitoral de Trump foi brilhante. Ele entendeu que havia um único jeito de vencer a nomeação contra competidores entrincheirados num campo de batalha lotado: ele precisava criar uma nova categoria e dominá-la, construindo vantagem cumulativa. Ele entendeu que a única maneira de chegar à presidência era ser o mais consistente possível e se tornar a escolha mais confortável e familiar que pudesse. E depois de tudo isso, ele ainda teria que esperar por uma vitória improvável, porque era o melhor que poderia conseguir. Mas uma vitória improvável ainda é uma vitória.
Ele segue usando a mesma estratégia ainda hoje, e ela continua funcionando. Se os seus oponentes querem manobrá-lo para fora do jogo, precisam de uma outra estratégia — porque a atual não funciona. Roger L. Martin é professor e ex-reitor da Rotman School of Management na University of Toronto. Ele é coautor de Playing to Win (Harvard Business Review Press, 2013).
Fonte HBR