Como o estúdio equilibra continuidade e renovação.
Em apenas uma década a Marvel Studios redefiniu o filme de franquia. Seus 22 filmes faturaram US$ 17 bilhões — mais que qualquer outra franquia de filmes da história. Ao mesmo tempo, eles obtiveram a expressiva média de 84% de índice de aprovação da Rotten Tomatoes (a média das 15 maiores bilheterias de filmes de franquia é de 68%) e recebeu 64 indicações e prêmios por filme. Vingadores: Ultimato, lançado no começo de 2019, recebeu excelentes críticas e gerou tanta procura que os sites de venda de ingressos online tiveram de reformular seus sistemas para atender à demanda.
A explicação de Kevin Feige, diretor da Marvel Studios, para a Variety, foi aparentemente simples: “Procurei sempre ampliar a definição do que poderia ser um filme da Marvel Studios. Não seguimos simplesmente um padrão,
fazemos o inesperado para fazer o público voltar sempre”. O segredo parece estar no equilíbrio certo entre criar filmes inovadores e manter uma continuidade suficiente para torná-los membros identificáveis de uma família coerente.
Mas atingir o equilíbrio é muito mais difícil que parece. Não é fácil fazer um filme suficientemente bem-sucedido apenas para manter uma franquia: seis dos oito filmes de pior desempenho com grandes orçamentos de 2017 deveriam ter iniciado novas franquias. E mesmo que o primeiro filme faça sucesso, as sequências geralmente não fazem: a maioria das franquias sofre queda contínua nas avaliações da crítica depois do primeiro filme, o que normalmente se reflete no resultado comercial. O diretor de Homem de ferro, Jon Favreau, observou: “É muito difícil evitar que as franquias percam fôlego depois de dois filmes. A julgar pela história, o ponto alto parece estar no segundo filme”.
Reforçando este ponto, Ed Catmull, CEO da Pixar, descreve as sequências de filmes como uma forma de “falência criativa”. Isso pode explicar por que a Pixar produziu todos os seus filmes com apenas quatro sequências.
Até agora, a Marvel não teve esse problema. Depois de 22 filmes, a organização ainda é capaz de renovar a ideia do que a Marvel Studios pode ser. Quando Pantera negra foi lançado, no início de 2018, gerando recordes de bilheteria, a crítica descreveu-o como uma “mudança radical” e um “magnífico destaque imaginativo” que forneceu “uma realidade vibrante mas convincente, misturada com comentários socialmente conscientes”. Como escreveu Ty Burr no Boston Globe, “o filme não reinventou o gênero de super-herói, mas o recuperou e revitalizou — arquétipos, clichês etc. — para espectadores ávidos em sonhar. O filme não se parece em nada com as abordagens superficiais de franquias corporativas comuns. É um trabalho de extrema sensibilidade”. No entanto, como comentaram outros críticos, o filme ainda foi de certa forma, inconfundivelmente, Marvel.
Como e por que a Marvel teve sucesso ao mesclar continuidade e renovação? Para responder a esta questão reunimos dados de cada um dos 20 filmes da Marvel Cinematic Universe (MCU) lançados até o fim de 2018, analisando
243 entrevistas presenciais e 95 entrevistas por vídeo com produtores, diretores, roteiristas e 140 avaliações de críticos renomados. Analisamos digitalmente o roteiro e o estilo visual de cada filme e examinamos as redes sociais de 1.023 atores e 25.853 funcionários dos bastidores, filme por filme. A análise dos dados indica que o sucesso da Marvel se baseia em quatro princípios: (1) adotar a experiência da inexperiência, (2) potencializar um núcleo estável, (3) continuar desafiando os padrões e (4) cultivar a curiosidade dos clientes. Nas próximas páginas exploraremos estes princípios mostrando não somente como eles são aplicados pela Marvel, mas também como eles explicam o sucesso de empresas em áreas muito diferentes.
ADOTAR A EXPERIÊNCIA DA INEXPERIÊNCIA
Na indústria cinematográfica, uma parte importante do resultado obtido depende de quem você contrata. E como diz o ditado, “o melhor previsor do desempenho futuro é o desempenho passado”. A Marvel Studios subverte esta máxima de forma fascinante: quando contrata diretores, ela procura experiência em uma área na qual não haja expertise.
Dos 15 diretores da MCU, somente um tinha experiência no gênero super-heróis (Joss Whedon tinha trabalhado como corroteirista do filme X-Men e criado para a Marvel um gibi em capítulos aclamado pela crítica). Por outro lado, eram todos profundos conhecedores de outros gêneros — tragédia, horror, espionagem e comédia. Muitas vezes, sua origem era de produções independentes. Essa experiência lhes permitia imprimir uma visão e um tom únicos em cada filme: Thor: o mundo sombrio tem conotações shakespearianas. Homem-Formiga é um filme sobre criminosos. Capitão América: o soldado invernal é um filme de espionagem. Guardiões da galáxia é uma vertiginosa ópera espacial. Além disso, a maioria dos diretores estava acostumada a trabalhar com orçamentos apertados (os orçamentos de seus filmes anteriores eram um sétimo de seus orçamentos na MCU).
Um bom exemplo é o primeiro filme da Marvel Studios, Homem de ferro (2008), que foi uma aposta dupla em
Favreau, como diretor, e em Robert Downey Jr., como ator principal. Favreau tinha background em filmes independentes com pequenos trabalhos, mas aclamados pela crítica, incluindo Swingers: curtindo a noite, Elf e Zathura: uma aventura espacial. Ele era conhecido pela capacidade de criar personagens interessantes e escrever diálogos inteligentes. Ele não tinha experiência em filmes de ação de super-heróis, sucessos de bilheteria, com suas deslumbrantes tecnologias visuais.
Downey tinha demonstrado suas qualidades de grande ator, talvez principalmente em Chaplin, mas ele era igualmente muito conhecido por suas recaídas no consumo de drogas e nunca fora escalado como ator principal de um grande filme de ação. Cada um contribuiu com sua experiência e inexperiência, e como resultado, de acordo com Jeff Bridges, ator coadjuvante de Homem de ferro e um veterano de Hollywood, a produção, às vezes, parecia “filme de US$ 200 milhões realizado por principiante”.
Mas o casamento deu certo. O crítico de cinema Roger Ebert descreveu a parte experimental da equação da seguinte forma: “Tony Stark foi criado a partir do personagem que Downey havia representado em muitos filmes: irreverente, extravagante, autodepreciativo, sarcástico. O fato de Downey ter tido permissão para pensar e falar do seu jeito e ao mesmo tempo vestir todo aquele equipamento foi uma decisão corajosa do diretor, Jon Favreau”. Ebert explicou as vantagens da inexperiência de Favreau no gênero super-herói: “Muitos dos grandes orçamentos de filmes épicos com efeitos especiais parecem abandonar suas histórias em meia hora de exibição e simplesmente jogam os efeitos na plateia. Este, no entanto, tem enredo tão engenhoso que continua a funcionar independentemente do barulho dos efeitos e do tamanho das explosões”.
A Marvel fez escolhas similares em seus outros filmes. Guardiões da galáxia foi dirigido por James Gunn, que se tornara famoso com filmes de terror de baixo custo. Gunn teve muita sorte ao escalar Chris Pratt, que se autodescreve como “o gordinho de estimação” da comédia de TV americana Parks and recreation, como um super-herói. Pratt construiu o filme em torno de músicas da década de 1970. Taika Waititi, com background em comédias malucas e estudo de personagens e sem experiência no gênero super-heróis, dirigiu Thor: Ragnarok. Ele fez questão de se distanciar dos dois primeiros filmes Thor e lançou o novo filme como um vídeo promocional com a canção “Immigrant Song”, de Led Zeppelin, como fundo musical. A crítica do New York Post observou: “Waititi aparece com um currículo de filmes independentes curtos e maravilhosos, lança um dos mais insossos personagens da Marvel numa travessura interplanetária em cores pastel espirituosa e estranha e segue na contramão de décadas de gibis bem-sucedidos inflacionados e sérios demais”. Para a crítica, o filme é uma bem-vinda autoparódia da MCU.
A Marvel Studios concede aos diretores um alto grau de controle, principalmente em áreas em que eles têm experiência. Favreau, Gunn e Waititi relatam que tiveram liberdade e encorajamento surpreendentes para fazer as coisas de seu jeito. Em 2008, numa entrevista, Favreau comentou: “Nós sentávamos no trailer com o pessoal da Marvel, com os produtores e os atores, e conversávamos sobre tomadas de cena, o que tínhamos gravado e o que tínhamos aprendido. Havia flexibilidade de material, por isso tínhamos muita liberdade para tentar caminhos diferentes, e um verdadeiro senso de frescor e descoberta no projeto”. A Marvel mantém constante e rígido controle sobre os efeitos especiais e sobre a logística. “Quando convidávamos um diretor, é para ele nos ajudar a fazer alguma coisa diferente com todos aqueles recursos”, explicou Feige em 2013. É uma combinação poderosa para os dois lados: os diretores notam aumento médio de 18 pontos percentuais na sua classificação da Rotten Tomatoes em relação a seus filmes anteriores e aos produzidos na MCU.
A indústria cinematográfica não é a única a adotar esta abordagem: as empresas de energia contratam meteorologistas para ajudá-las a obter soluções energéticas sustentáveis. Os fundos de investimentos, jogadores de xadrez de alto nível com habilidades em reconhecimento prévio de padrões. Empresas de consultoria renovaram seus produtos contratando designers de moda e antropólogos. O Cirque Du Soleil contratou Fabrice Becker, campeão olímpico, medalhista de ouro em esqui estilo livre pela França nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1992, como diretor de criação. O fundador da Patagonia, Yvon Chouinard, revelou a um perfil na Inc. em 1992: “Descobri que, em vez de contratar homens de negócios e ensiná-los a ser nômades modernos, é mais fácil ensinar nômades modernos a ser homens de negócios”. Para Patagonia, a experiência do “nômade moderno” — pessoas apaixonadas por esportes ao ar livre a custo zero — permite obter um profundo conhecimento sobre clientes, produtos e formas sustentáveis de convencimento.
Um bom exemplo é a Outfit7, empresa multinacional familiar de entretenimento de mais rápido crescimento do planeta fundada por oito eslovenos. Ela é conhecida pelo fenômeno mundial Meu Tom Falante, cujos aplicativos lideram as estatísticas globais com cerca de 10 milhões de downloads. Quando um grupo de investidores asiáticos adquiriu a empresa, Žiga Vavpotič, de 32 anos, foi indicado presidente do conselho. Vavpotič havia ingressado na Outfit7 em 2014 e afirmava nunca ter baixado sequer um jogo de computador. Mas ele tinha adquirido profunda expertise trabalhando em ONGs e com empreendedores sociais. A mistura de inexperiência tecnológica e experiência empresarial permitiu-lhe focar no processo de expansão sem se atrapalhar em discussões sobre tecnologia.
Poucas empresas estão preparadas para assumir esse risco. Pesquisa sobre o embarque de funcionários mostra que a maioria das empresas ou os seleciona de acordo com a experiência que se sobrepõe à base de conhecimento existente ou — mesmo quando não há essa superposição — se preocupa com a socialização dos novos funcionários, o que acaba neutralizando o valor da expertise externa. Elas perdem uma oportunidade importante, como a Marvel demonstrou.
POTENCIALIZAR UM NÚCLEO ESTÁVEL
Para equilibrar o novo talento, opiniões e ideias que inclui em cada filme, a Marvel mantém um pequeno número de pessoas filme após filme. A estabilidade que eles fornecem permite que a empresa crie continuidade em seus produtos e um clima que atrai novos talentos.
Comparamos a sobreposição entre filmes no staff no núcleo do grupo de criação (normalmente cerca de 30 pessoas em cada filme) com a sobreposição de toda a tripulação (cerca de 2.500 pessoas) e descobrimos que há significativamente mais sobreposição no núcleo de criação. Em média, 25% do grupo do núcleo é mantido de um filme para o seguinte (com variação de 14% a 68%), e a sobreposição de toda a tripulação é, em média, de 14% (com variação de 2% a 33%). Previsivelmente, os filmes sequenciais mostram mais sobreposição
do grupo do núcleo: por exemplo, de Capitão América: o soldado invernal para Capitão América: guerra civil, foi de 68%, e do Homem de ferro 1 para Homem de Ferro 2, 55%.
Um núcleo estável facilita a renovação, porque ele exerce uma espécie de efeito gravitacional. As pessoas que não pertencem ao núcleo estão ansiosas para fazer parte dele. Anteriormente, os filmes de super-heróis eram considerados como o beijo da morte para os atores com grandes ambições artísticas. Mas vencedores do Oscar como Gwyneth Paltrow, Anthony Hopkins, Forest Whitaker e Lupita Nyong’o foram todos atores na MCU. Cate Blanchett, também vencedora do Oscar, declarou em entrevista de 2017 que gostou de participar dos filmes da MCU: “Logo no início, eu joguei um monte de ideias para Taika, para o pessoal da Motion Capture e para a equipe de efeitos especiais; eles aproveitaram minhas ideias e as incluíram no filme: e se eu desse um tiro? E seu
eu usasse boné em determinada cena?”.
Pensando bem, essa atração dos atores pela projeção e recursos do universo cinematográfico mais bem-sucedido do mundo não surpreende. Mas aparentemente a atração gravitacional sempre esteve presente, desde o começo. Entrevistada no set do primeiro Homem de ferro, Paltrow afirmou ter “assinado um pacto de sangue” com três filmes — algo que nunca fizera antes. Atrizes e atores como Scarlett Johansson, Benedict Cumberbatch e os protagonistas de Guardiões da galáxia expuseram em entrevistas os motivos de terem agido assim: eles se sentiram acolhidos e com total autonomia para a “fazer as cenas”, explorar e colaborar na construção de personagens peculiares e interessantes. No entanto, vencedora do Oscar, Brie Larson, assinou contrato de sete anos com a Marvel.
Até colaboradores que possivelmente tiveram experiência negativa com a Marvel parecem dispostos a voltar. Zak Penn, roteirista renomado (coautor do roteiro de Jogador nº1, de Steven Spielberg) é um bom exemplo. Recrutado
para escrever o roteiro de O incrível Hulk, ele acabou tendo de brigar pelos créditos do roteiro com o ator principal do filme, Edward Norton. Depois Penn passou vários anos escrevendo um roteiro de Os vingadores somente para ver Whedon ser contratado como diretor, e posteriormente reescrevê-lo a partir do zero. Muitas pessoas criativas recusariam colaborações futuras depois de experiências como essas. No entanto, Penn está supostamente escrevendo um roteiro confidencial para a Marvel.
Na última década, os maiores clubes de futebol da Liga dos Campeões da UEFA se desatacaram com uma abordagem similar. O Barcelona, no período em que esteve entre os melhores do mundo (2008-2015), manteve a continuidade desenvolvendo jovens talentos de suas próprias categorias de base e mantendo uma linha central da equipe ano após ano e, ao mesmo tempo, incorporando novas estrelas (Luis Suárez, Neymar) para completar o grupo central. O Real Madrid tradicionalmente gastou muito dinheiro na compra de superestrelas — os chamados galácticos. Depois de 2003, essa estratégia deixou de funcionar à medida que o clube lutava repetidamente para chegar aos estágios finais da Liga dos Campeões. Então o clube adotou uma abordagem semelhante à do Barcelona, desenvolvendo um núcleo de jovens jogadores misturados com estrelas e outros jogadores intermediários, além de uma equipe de gestão estável liderada pelo ex-jogador Zinedine Zidane. O Real Madrid acabou vencendo a Liga dos Campeões de forma inédita, três vezes consecutivas (2016-2018). Sua formação titular era praticamente a mesma em cada temporada, o que o tornou o clube mais estável entre os melhores da Europa. A estabilidade permitiu que os dois clubes absorvessem melhor novos jogadores de apoio.
Um exemplo numa área diferente é a Broken Social Scene, banda que mais se assemelha a um “grupo de música coletiva”. Ela começou como dupla, mas seus álbuns incluíam artistas colaboradores temporários de outras bandas que entravam na Broken Social Scene e saíam. No segundo álbum do grupo, por exemplo, participaram 11 músicos. Oito anos depois eles lançaram um álbum com a participação de 28 artistas. O dueto original continua como núcleo, e os outros artistas atuam perifericamente.
Grandes organizações como a 3M e a Nestlé adotam estratégia similar. Suas estruturas organizacionais clássicas são recobertas por redes de equipes, e as redes são monitoradas para garantir uma evolução estável — novos membros entram e outros saem. Organizações que preservam o núcleo revitalizam a periferia e sabem que as redes de relacionamentos podem permitir renovação, dinamismo e flexibilidade, atrair um fluxo de novas ideias e ao mesmo tempo facilitar a continuidade mantendo praticamente intacta a estrutura organizacional.
CONTINUAR DESAFIANDO OS PADRÕES
Em geral, as organizações relutam em abandonar o que tornou bem-sucedido um produto criativo. Mas os diretores da Marvel Studios são unânimes em abrir mão dos elementos que fizeram o sucesso dos filmes anteriores da MCU. Peyton Reed, diretor de O homem-formiga e a vespa, explicou em 2018 como seu filme decorreu diretamente dos precedentes (Pantera negra e Vingadores: guerra infinita): “Queríamos estar no gênero policial em termos de estrutura e analisando coisas como os romances de Elmore Leonard e filmes como Fuga à meia-noite e Depois das horas. Sempre soubemos que estaríamos saindo dessa orientação depois de Pantera negra e Vingadores: guerra infinita. Para descobrirmos se isso estava acontecendo, analisamos todos os filmes da MCU para saber se havia evidências de que eram banais. As pessoas estavam de fato assistindo ao mesmo filme diversas vezes?
De início a resposta parecia ser sim. Todos os filmes da MCU eram sobre super-heróis, vilões, e carregados de batalhas apoteóticas fortemente baseadas em efeitos gerados por computador. E em todo filme se notava a breve aparição, como convidado especial, do falecido Stan Lee, autor de vários gibis originais da Marvel Comics. Mas uma análise detalhada revelou algo mais complexo. Nós vivenciamos os filmes pelo drama que geram, bem como pela história visual que contam. Para entendermos essas dimensões, realizamos uma análise textual computadorizada do roteiro de cada filme e uma análise visual das imagens. Analisamos também os elementos que os principais críticos destacaram como de alguma forma desafiadores ou revitalizadores dos filmes do gênero super-heróis. Nosso objetivo era saber em detalhes se os filmes diferiam em termos de elementos dramáticos, visuais e narrativos.
Nossa análise do roteiro revelou que os filmes da Marvel diferiam dos demais em tons emocionais (equilíbrio entre emoções positivas e negativas expressadas verbalmente pelos personagens). Homem de ferro 2, por exemplo, contém muito humor, incluindo uma cena na qual Nick Fury diz ao Homem de Ferro, que está sentado dentro de um enorme doughnut que mais parecia um letreiro de restaurante: “Senhor, vou ter que lhe pedir que saia do doughnut!”. Por outro lado, o filme seguinte, Thor, sobre o desapontamento do pai de Thor, que o bane de sua presença, é mais sombrio e triste.
Os filmes são diferentes também virtualmente. As maiores variações vão de Capitão América: soldado invernal a Guardiões da galáxia e Vingadores: era de Ultron. O cenário do primeiro e do terceiro é a Terra e o de Guardiões, o espaço e planetas alienígenas. Além disso, os filmes mais elogiados pela crítica (e público) são exatamente aqueles considerados violadores do gênero super-heróis. O incrível Hulk e os dois primeiros Thor são genericamente descritos pela crítica como “estereótipos enfadonhos” e “somente envolventes para os muito jovens”. O público está sendo “massacrado por um clichê depois do outro” e por uma “extravagância visual” cansativa. Por outro lado, os críticos consideraram O homem de ferro notável pelo realismo e pela profundidade e autenticidade incomuns do personagem principal; Guardiões da galáxia pela utilização revigorante de músicas da década de 1970 e pelo enaltecimento dos desajustados; Doutor estranho pelo visual sofisticado e pelo aspecto intelectual; Homem-aranha: de volta ao lar por ser um não à ultraviolência intergaláctica e um chamado à responsabilidade para com a vizinhança; e Pantera negra por seu fundo social e pelos personagens politizados.
Não só o público parece tolerar a constante experimentação da Marvel, como isso se tornou um elemento crítico da experiência da MCU: os fãs assistem ao próximo filme procurando ver alguma coisa diferente. Por outro lado, as franquias de filmes que continuaram presos a uma fórmula vencedora encontram problemas quando tentam se renovar.
Pense, por exemplo, em Star wars: episódio VIII — o último Jedi. Ele foi aclamado pela crítica pelos efeitos visuais, surpreendentemente diferentes dos filmes anteriores da franquia e pelo afã de romper com a dramaticidade dos filmes anteriores. Mas, para os fãs assíduos das franquias, essas violações eram inaceitáveis — um sacrilégio.
Consequentemente, mais de 100 mil fãs assinaram uma petição da Change.org pedindo à Disney que retirasse do filme os padrões de Guerra nas estrelas. Atores que representavam alguns dos novos personagens foram perturbados e intimidados online. Os filmes Guerra nas estrelas tinham seguido uma fórmula que limitava a capacidade dos diretores de oferecer inovações ao público. Tentar algo novo levou a uma reação violenta porque os fãs da franquia não estavam procurando nada novo.
O que a experiência da MCU mostra é que as franquias se beneficiam de experimentação contínua. Aparentemente
a lição vale também fora da indústria cinematográfica. A rede de lojas de vestuário espanhola Zara costuma fazer constantemente pequenos lançamentos de novas peças baseadas em tendências recentes, muitas vezes de ateliês de alta-costura. Os concorrentes da Zara esperam que seus clientes os visitem duas a três vezes ao ano, mas os clientes da Zara costumam visitá-la com frequência de até cinco vezes, porque eles esperam que os novos modelos violem os preceitos dos antigos.
CULTIVAR A CURIOSIDADE DOS CLIENTES
No mínimo, a Marvel Studios desperta um forte interesse em personagens, enredos e mundos completamente novos. Seu universo transmite uma sensação enigmática que envolve qualquer um. Os cinéfilos tornam-se participantes ativos de uma experiência maior.
A Marvel cultiva a curiosidade de várias formas. Uma delas é envolvendo o público indiretamente, como coprodutores, por meio de interações pelas mídias sociais. Essa abordagem baseia-se numa longa tradição da Marvel de estimular o crescimento das comunidades de fãs incluindo, por exemplo, uma coluna com cartas dos leitores na capa dos gibis. As colunas permitem que os fãs se expressem publicamente, e os criadores respondem aos fãs dando-lhes feedback. Continuando essa tradição, Favreau e outros diretores da Marvel decidiram utilizar as mídias sociais para manter-se em contato com a comunidade de fãs mais exigentes de gibis, aproveitando insights de salas de bate-papo e fóruns de discussão.
A Marvel cria sistematicamente um clima de expectativa para seus próximos lançamentos colocando “ovos de Páscoa” (indícios sutis) em seus lançamentos atuais que sugerem um produto futuro sem revelar a história. Os exemplos mais óbvios são as famosas cenas pós-créditos. A primeira delas foi mostrada no final de Homem de ferro, em que Nick Fury, da S.H.I.E.L.D., interpretado por Samuel L. Jackson, sugere aos fãs que o Homem de Ferro pode fazer parte de um universo mais amplo. Os filmes também apresentam elementos e referências semiocultos na tela que somente fãs obstinados percebem — ou o desenvolvimento de enredo e personagens que desempenham papéis em vários filmes e produtos. O Desafio Infinito, por exemplo, uma arma que ocupa um lugar de destaque no 19º filme, pode ser visto ao fundo em Thor, o quarto filme. Uma arma igualmente importante, o Staff do Tribunal Vivo, foi casualmente apresentada em Doutor estranho e pode ser o prenúncio da existência de um novo personagem — chamado Tribunal Vivo — em filmes futuros. Em Thor: o mundo sombrio, aparece um quadro negro cheio de equações, das quais uma faz referência a uma história em quadrinhos em capítulos em que o Doutor Estranho aprisiona o incrível Hulk, o que possivelmente é o prenúncio de uma virada no enredo.
Fãs incondicionais de gibis detectam inúmeros outros sinais, juntamente com referências ocultas e abertas, a outros filmes internos ou externos ao universo Marvel. Os críticos e comentaristas são especialistas em detectar as pistas mais óbvias, incluindo cenas inspiradas em Os caçadores da arca perdida, Relíquia macabra e Guerra nas estrelas em Guardiões da Galáxia, e várias alusões aos filmes de James Bond em Pantera negra. Para os aficionados, uma infinidade de blogs e sites especializados permite envolvimento profundo. Somente Pantera negra alimenta dezenas desses sites, onde é possível comentar tudo, desde ilustrações de gibis, clara referência aos tênis com cadarço autoajustável em De volta para o futuro Parte II, alusões à cultura africana, a importância da cena de abertura em Oakland (onde cresceu o diretor Ryan Coogler e onde surgiu o grupo Panteras Negras), até pistas sutis (ou nem tanto) à independência do País de Gales, e o muro de Trump na fronteira com o México.
Outras organizações expandiram seu universo de inovação cultivando uma sensação de mistério e curiosidade.
A ideia dos ovos de Páscoa surgiu num videogame de 1979 — Aventura, da Atari —, e desde então foi incorporada a outros videogames, gibis, mídias domésticas e produtos de software. A Google utiliza esse mecanismo para promover a descontração entre seus empregados, e recentemente ela comemorou o vigésimo aniversário de sua máquina de busca com uma série de ovos de Páscoa de cunho nostálgico.
A marca Jordan, da Nike, gera curiosidade com os aspectos escondidos em cada novo lançamento de tênis — pontos Braille na lingueta soletrando “Jordan”, uma janela que permite entrever uma haste de fibra de carbono, citações sobre superação de fracassos, gravadas a laser na sola. De fato, a Nike utiliza várias estratégias da Marvel — detalhes que criam vínculos entre produtos, suspense antes dos lançamentos e uma vasta rede de consumidores online que fornece o feedback e, no caso da Nike, permite ao cliente acesso antecipado a um lançamento limitado de tênis.
A maioria das abordagens, para manter a criatividade e a inovação, concentra-se em criar uma cultura ou seguir um processo. Essas abordagens são úteis, mas falta-lhes um detalhe importante: em muitos contextos, um produto bem-sucedido impõe restrições no que pode vir depois. Os quatro princípios da Marvel Cinematic Universe ajudarão as empresas a ir além dessas restrições — mas eles precisam ser aplicados integralmente. Adotar a experiência da inexperiência (princípio #1) sem um comprometimento forte e contínuo em desafiar padrões (princípio #3) e uma tripulação estável do núcleo (princípio #2) significará somente que as pessoas disponíveis não serão capazes de fazer o que você quer que façam. Analogamente, a falta de comprometimento em desafiar o padrão (princípio #3) destruirá o potencial de cultivar a curiosidade do cliente (princípio #4): ovos de Páscoa ardilosos não compensam um filme banal ou uma linha de produto chato. Se uma empresa for bem-sucedida em acionar os seis cilindros de uma vez, ela construirá um motor sustentável e inovação sempre renovada.
SPENCER HARRISON é professor associado do Insead.
ARNE CARLSEN é professor na Faculdade Norueguesa de Administração BI, em Oslo.
MIHA ŠKERLAVAJ é professor na Universidade de Liubliana, na Eslovênia, e professor adjunto na Faculdade de Administração BI da Noruega.