Ela é essencial na tomada de decisões para evitar desperdício e desvios de recursos, além de garantir uma assistência adequada ao paciente.
Infelizmente, o setor de saúde não está imune a decisões enviesadas que podem culminar em desvios éticos e até mesmo ações desonestas. Um exemplo recente foi o escândalo conhecido como Máfia das Próteses, que resultou em fraudes e oferta de propinas na comercialização desses dispositivos. CPIs na Câmara e no Senado apuraram pagamentos de comissões aos prestadores de serviços, que variavam de 10% a 30% sobre o valor das peças. Além disso, foi identificado superfaturamento para cirurgias realizadas no Sistema Único de Saúde, o SUS.
Esse episódio ilustra como a ausência de uma atitude transparente em relação a conflitos de interesses impacta de forma negativa a área de saúde. É algo que vai além de desperdícios e falcatruas: a consequência mais grave é para o paciente, que fica com a segurança e o bem- estar sob maior risco. Sem contar a indicação de procedimentos e terapias desnecessários, muitas vezes sem considerar os achados científicos mais atualizados. Isso também prejudica a sustentabilidade do sistema de saúde como um todo, que se torna mais oneroso e menos acessível à população em geral.
Diante desse quadro, vem a pergunta: afinal, o que é um conflito de interesse e como ele se materializa? Trata-se de uma equação matemática simples e, para que ganhe forma, é preciso que estejam presentes todos os elementos abaixo:
Os conflitos de interesses se configuram quando uma decisão é tomada de maneira parcial, influenciada por um interesse secundário, em detrimento do interesse primário. Esse interesse secundário, em geral, traz benefícios ao tomador da decisão.
No segmento de saúde, o paciente é o ator principal de uma rede complexa de relacionamentos. Além dos prestadores de serviços e dos profissionais de saúde, fazem parte da cadeia de serviços indústrias, distribuidores de materiais e medicamentos, operadoras de planos de saúde, o SUS e órgãos reguladores. Os hospitais reúnem, normalmente, todos esses atores, que se relacionam entre si por meio de parcerias para disseminação de conhecimento e adoção de novas técnicas assistenciais.
Tais parcerias vão desde o oferecimento de amostras grátis em consultórios, passando por subsídios para participação em congressos médicos, estabelecimento de contratos de preceptorship (profissionais experientes contratados pela indústria para treinar novos médicos), educação continuada paga pela indústria, dentre outros.
Diante desse contexto, instituições de saúde tornam-se o ambiente ideal para a definição e disseminação de regras e limites para que esses relacionamentos aconteçam. Nesse sentido, caberia também aos hospitais o protagonismo de criar mecanismos de controle que contribuam para o monitoramento e detecção de eventuais extravios, além de uma adequada gestão de riscos sobre os potenciais conflitos de interesses.
O primeiro passo para isso é torná-los transparentes, ou seja, fazer com que as relações existentes entre os diversos atores da rede de prestação de serviços da saúde sejam públicas, para que as decisões institucionais levem em consideração esses vínculos. Mas nem sempre as organizações divulgam esse tipo de informação, o que pode comprometer toda a cadeia. Daí a necessidade de uma regulamentação do setor. O Projeto de Lei 7.990/2017, por exemplo, visa disciplinar a transparência e a publicidade de relações financeiras entre médicos, hospitais- escola, indústria farmacêutica e afins.
De acordo com o Art. 2o desse PL, “a transparência será garantida por meio da publicação e divulgação de todos os gastos que forem feitos pelos produtores e fornecedores de medicamentos, fármacos, equipamentos médicos (…), que de qualquer forma estejam relacionados ou possam ser considerados como concessão de benefícios aos profissionais médicos, tais como: I – prêmios e bonificações; II – viagens, passagens, hospedagens, alimentação; III – pagamento de vantagens e custeios de despesas para participação em congressos e congêneres”. Essa iniciativa ainda aguarda designação de relator na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, conforme o site da Casa.
Nos Estados Unidos, existe uma regulamentação dessa natureza, o Physician Payments Sunshine Act, que entrou em vigor em 2013. A legislação americana estipula que empresas e fabricantes do setor de saúde tornem públicas informações sobre pagamento e transferência de valores para profissionais da área e correlatos.
O fato é que há várias formas para se evitar que um conflito de interesse se materialize no ambiente hospitalar. Elas passam por reduzir o poder de decisão da pessoa envolvida no conflito, exigir decisões colegiadas ou fundamentadas em segunda opinião. Toda vez que essa situação fica às claras, ela deixa de existir. Isso porque o profissional estará impedido de atuar na tomada de decisão. Novamente, tudo se baseia na transparência.
O Einstein, por exemplo, por meio da Diretoria de Compliance, implantou controles para gerenciar os potenciais conflitos de interesses no âmbito institucional e, também, nas relações que envolvem médicos e pacientes.
No âmbito institucional, a organização implantou uma Política de Prevenção e Controle de Potenciais Conflitos de Interesses na Governança Corporativa. Seu objetivo é garantir decisões isentas quando pessoas chave da administração detiverem controles, como sócios, em outras empresas que transacionam com a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein (conceito de partes associadas e relacionadas).
O Comitê de Conflitos de Interesses da Governança Corporativa tem a missão de avaliar, de forma independente, a existência dessa forma de conflito entre os membros da Governança do Einstein e recomendar ações para mitigar ou corrigir situações de vulnerabilidade. Ele é constituído por dois diretores primordiais (um da Mesa Diretora e outro da Diretoria Eleita), além de um membro independente que não exerce qualquer cargo ou função no Einstein. Essa forma de representação é adotada no exterior, mas ainda pouco usual no Brasil. Ela é usada
quando pessoas chave da administração, como seu presidente, se encontram em situação conflitada. Nesses casos, o diretor primordial assume seu lugar durante uma tomada de decisão.
Os contratos com partes associadas críticas, antes de serem assinados e formalizados, passam por uma avaliação prévia desse comitê, que analisa se está de acordo com o valor e condições de mercado e não beneficia indevidamente qualquer das partes.
Todos os integrantes da governança corporativa declaram anualmente seus vínculos ou de seus familiares, como a participação societária, cargos executivos de alto escalão em outras empresas ou funções em conselhos. Nesse momento, eles assumem o compromisso com a política de confidencialidade das informações e com a abstenção de seu direito de decidir, quando houver um potencial conflito. Além disso, todas as transações financeiras de receita e de despesa com Partes Associadas são monitoradas e formalizadas em relatórios trimestrais direcionados ao Comitê de Conflitos de Interesses na Governança.
Já no âmbito da relação médico e paciente, a Política Institucional de Prevenção e Controle de Potenciais Conflitos de Interesses prevê que colaboradores e médicos que possuem poder de decisão no Einstein devem declarar seus potenciais conflitos de interesses. Tais declarações são analisadas pelos diretores do Einstein, que determinam medidas para a mitigação do conflito, como afastar a pessoa “conflitada” da decisão, decisões colegiadas ou ações de educação para reforço do cumprimento da política.
Importante destacar que declaração e análise dos potenciais conflitos de interesses são apenas alguns entre os diversos controles que uma Instituição de saúde deve ter para evitar que desvios éticos, desperdícios e fraude coloquem em risco a integridade das decisões institucionais, a saúde e a segurança do paciente.
No ambiente hospitalar, controles como o monitoramento da prática médica por meio de protocolos assistenciais, padronização de materiais e medicamentos, comitês de integridade científica em pesquisa e ensino são controles importantes porque tornam o ambiente mais seguro.
Não há uma única solução capaz de impedir as distorções construídas ao longo das últimas décadas. Ações combinadas devem incluir novas políticas públicas e iniciativas privadas que deem o tom e pautem como assegurar aos pacientes e às instituições escolhas isentas e éticas.
Dr. Sidney Klajner, presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein
Fonte HBR