Todd* é um homem elegante de 45 anos, mas quando chegou ao luxuoso restaurante onde marcamos nosso encontro, seus ombros estavam caídos e ele mexia seus dedos sem parar, em sinal de nervosismo. No dia em que nos falamos, Todd estava desempregado há cerca de dez meses. Sua demissão trouxe impactos financeiros significativos à família. Ainda assim, com uma voz acanhada, ele confessou: “Acredito que a parte mais difícil é sentir que ninguém lhe valoriza”.
Em 2014, entrevistei Todd, profissional da área de marketing, para o meu próximo livro, “Crunch time: how married couples confront unemployment”, que foca nas experiências de profissionais casados, com filhos e alto nível de escolaridade que enfrentaram o desemprego nos Estados Unidos. Assim como para dezenas de outros profissionais que entrevistei, o emprego de Todd determinava quem ele era e como ele media sua condição social e seu valor. Contudo, essa autovalorização é constantemente ameaçada, pois profissionais como Todd recentemente se tornaram vítimas de uma incerteza generalizada no mercado de trabalho que já existe há muito tempo, antes da pandemia do novo coronavírus.
Conforme o desemprego atinge níveis históricos, agora é um bom momento para reavaliar essa relação entre a nossa identidade e o nosso emprego.
A incerteza no mercado de trabalho vem aumentando há décadas
Há muito tempo, as empresas norte-americanas vêm mudando suas filosofias, deixando a ideia de “maior é melhor” para focarem em “menor e mais harmonioso”. Demissões, corte no número de funcionários e readaptação agora fazem parte da lógica estrutural de muitas organizações. A Grande Recessão de 2007-2009 foi um divisor de águas, cristalizando a tendência de incerteza no mercado de trabalho, até mesmo para profissionais com altos níveis de escolaridade. Hoje, a crise econômica causada pelo distanciamento social ameaça destruir a carreira de uma parcela ainda maior de profissionais norte-americanos.
Os custos econômicos impostos às pessoas e às famílias serão enormes, obviamente, mas qual será o impacto humano? Além de perder a renda, Todd vivenciou a perda de seu status social e a profunda sensação de humilhação. Enquanto lutava contra o sentimento de rejeição pelo mercado de trabalho e a vergonha de estar desempregado, ele perdeu a confiança em si mesmo. Não sabia como interagir com os outros ou como aproveitar seu tempo de forma produtiva.
A experiência de Todd destaca uma realidade moderna: o emprego – ou a falta dele – tornou-se um marcador intrínseco do valor moral de uma pessoa. Há muitos anos, o sociólogo Erving Goffman considerou o desemprego como uma “identidade danificada”. De acordo com ele, é negada aos desempregados a participação plena na vida social porque as outras pessoas os veem com desconfiança. Durante a minha pesquisa, ouvi – em primeira mão – relatos desse estigma. Por exemplo, Robert, outro desempregado em meu estudo, explicou que os vizinhos e amigos o tratavam de forma diferente, com cautela. Era como se eles tivessem medo de “serem infectados” pelo desemprego se ficassem muito perto dele.
Outros estudiosos, com base em pesquisas sobre reviravoltas econômicas como a Grande Depressão e a Crise Agrícola de Iowa na década de 1980, descobriram que o emprego tem outras funções importantes, além da renda: mais do que ser a base do nosso status social e da nossa identidade, ele nos fornece uma forma de estruturarmos o nosso tempo, oferece um senso de propósito e amplia nossos contatos sociais. A partir dessa perspectiva, o desemprego não apenas retira a renda, mas prejudica um elemento primordial, organizador da nossa vida.
Mães e pais enfrentam o desemprego de modo diferente
Apesar de o sentimento de autoestima ferida de Robert e Todd ser comum a muitos outros homens com os quais conversei, a situação foi um pouco diferente no caso de mulheres desempregadas, pelo menos nos primeiros meses após a demissão. Doris, uma advogada que havia perdido o emprego, me disse: “Sinto-me muito validada com o fato de ser mãe”. Ela associou isso especificamente ao alto nível de exigência de seu emprego anterior, que ela descreve como uma posição que lhe exigia muito “malabarismo”, impedindo-a de passar o tempo que gostaria com os dois filhos.
Mulheres desempregadas falaram sobre ter acesso a um novo mundo social: o das mães que ficam em casa. Quando Darlene, outra mulher desempregada, apareceu na escola de seu filho em uma manhã no meio da semana, ela foi recebida por outras mães da Associação de Pais e Professores da escola. Ela explica: “Elas não me perguntaram ‘O que você faz aqui às 10 horas da manhã numa terça-feira?’” Em vez de precisar justificar por que não estava no trabalho, Darlene se sentiu calorosamente incluída: “Elas disseram ‘Vamos lá, precisamos da sua ajuda!’”
Pais desempregados, por outro lado, têm uma experiência diferente com a paternidade. Um pai, William, descreveu um certo desconforto em cuidar de seu filho de quatro anos durante a semana. William levava seu filho à piscina do bairro, onde, segundo ele: “Eram umas 20 mães e eu”. Ele acrescentou: “Eu simplesmente não sabia como interagir com elas e, na verdade, não queria aquela interação, sabe? Foi estranho. Me senti como se eu fosse aquele cara.” O desconforto de William contrasta de forma significativa com a experiência de Darlene.
Entretanto, com o tempo, descobri que até mesmo mulheres que viram no desemprego uma forma de se livrar da impossível tarefa de tentar ser a profissional ideal e a mãe perfeita, almejam atuar profissionalmente. E, ao passo que a maternidade ajuda algumas mulheres desempregadas a estruturar seu tempo, ter um senso de propósito e ampliar seus contatos sociais, isso se deve clara e possivelmente ao fato de que o trabalho remunerado das mulheres não tem o mesmo valor que o dos homens. Até mesmo quando as mulheres ganham mais do que seus maridos, elas continuam sendo responsáveis pelas tarefas invisíveis e não remuneradas da casa e da família. A paternidade ainda não é uma forma legítima de os homens contribuírem com suas famílias nos Estados Unidos, então, para homens desempregados, ela não substitui as funções latentes de um emprego. Esse paradigma dificulta a participação igualitária das mulheres na esfera do trabalho remunerado e a participação também igualitária dos homens na esfera do trabalho não remunerado e dos cuidados com os filhos.
Chegou a hora de repensarmos isso. O governo e os empregadores podem ajudar.
Conforme o emprego estável se torna mais precário nos Estados Unidos e no mundo, e nos preparamos para uma onda de desemprego devido à pandemia da Covid-19, devemos analisar o significado que damos ao emprego como fator determinante de nosso valor social.
Separar o valor moral do emprego requer uma mudança cultural, mudança essa que deve ser promovida por políticas sociais. Por exemplo, o seguro desemprego normalmente é uma importante ferramenta de contenção em termos de políticas e, geralmente, o uso desse benefício carrega um estigma, que tem origem na correlação entre moralidade e emprego. A renda básica universal, que forneceria uma renda para subsistência, independentemente de alguém estar empregado ou não, pode representar uma forma de minimizar essa relação entre trabalho e valor moral.
As políticas governamentais poderiam também eliminar a desigualdade de gênero, possibilitando que tanto homens quanto mulheres desempenhassem diversos papéis sociais, não apenas o de trabalhadores, mas o de pais, mães, irmãos, filhos, tias, tios, amigos e mentores. Isso poderia ser parcialmente alcançado, se cuidar dos filhos fosse reconhecido como um trabalho, como já acontece em muitos países nórdicos. Na Suécia, ambos os pais têm direito a cerca de quinze meses de licença, sendo que até 80% dela é custeada pelo governo (com um teto). Eles também têm direito a uma vaga em uma creche pública quando o filho completa um ano de idade. Investir em políticas sociais que levam em consideração a necessidade de cuidar dos filhos pode incentivar homens e mulheres a se sentirem orgulhosos e a encontrarem significado nos papéis desempenhados fora da esfera do trabalho remunerado.
Os empregadores também devem fazer a sua parte. Por exemplo, as empresas podem reduzir suas expectativas em relação à constante disponibilidade dos funcionários, tempo presencial e devoção extrema ao trabalho. Ao adotarem políticas de flexibilidade — ou seja, trabalhar de casa ou possibilitar horários flexíveis — os empregadores poderiam sinalizar que tais políticas são viáveis e aceitáveis sem que haja prejuízo à carreira. As empresas podem desempenhar um importante papel na redefinição da cultura no trabalho, apenas levando em consideração as obrigações dos funcionários para com outros aspectos fora dele.
Juntas, essas medidas poderiam ajudar pais e mães a cumprir seus papéis fora do trabalho. A presença de William na piscina seria algo normal, simplesmente porque pais cuidando de seus filhos não seria algo atípico.
Com o passar dos anos, Todd, William, Doris, Robert, Darlene e outros profissionais com os quais conversei conseguiram novos empregos depois de um tempo. Alguns conseguiram um trabalho em tempo integral com ótimos benefícios; outros trabalham meio período. Ainda assim, uns se cansaram de procurar emprego e decidiram abrir empresas de consultoria. Durante os altos e baixos profissionais, a vida continuou acontecendo. Alguns perderam os pais, outros se divorciaram. Uma pessoa faleceu. Alguns perderam o emprego novamente. Contudo, a lição profissional foi clara a todos: o emprego, mesmo quando de prestígio e com bom salário, deixou de ser confiável.
Sendo assim, faz sentido dedicar todo o nosso bem-estar mental e emocional a esse camarada tão instável?
*Todos os nomes são fictícios.
Aliya Hamid Rao é Professora Assistente de Sociologia da Singapore Management University. Sua pesquisa se concentra nas intersecções entre trabalho, família e gênero. Seu livro “Crunch time: how married couples confront unemployment” será lançado em junho de 2020 pela University of California Press.
Fonte HBR