É o caso de John. Ele é um mago em análise de dados. Combina habilidade matemática e de desenvolvimento de software de forma altamente incomum. Seu currículo ostenta dois mestrados — ele foi aprovado com louvor em ambos. Uma contratação óbvia para uma empresa de tecnologia, certo?
Não até recentemente. Antes de encontrar uma empresa que começava a experimentar abordagens alternativas de talento, John estava desempregado havia mais de dois anos. As empresas que o entrevistavam necessitavam urgentemente de suas habilidades. Mas ele não conseguia passar no processo de recrutamento.
Observe John por algum tempo e entenderá o motivo. Ele parece… diferente. Usa fones de ouvido o tempo todo, e quando as pessoas falam com ele não olha diretamente para elas. De dez em dez minutos se abaixa para amarrar os sapatos, pois não consegue se concentrar quando estão desamarrados. Quando amarrados, porém, John é o funcionário mais produtivo do departamento. Ele trabalha duro e não gosta de fazer intervalos. Mesmo após ter sido, finalmente, persuadido por seu “companheiro designado” a fazer pausas, prefere não fazê-las.
“John” é um compósito de pessoas com transtorno do espectro autista cuja privacidade preferimos proteger. Ele é um dos participantes dos programas de busca de talentos “neurodiversos” empreendidos por empresas pioneiras.
Muita gente é como John. Agora, a incidência de autismo nos Estados Unidos é um em 42 meninos e um em 189 meninas, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças. Embora programas corporativos, por enquanto, foquem principalmente em autistas, deverá ser possível estendê-los a pessoas com dispraxia (distúrbio físico de base neurológica), dislexia, TDAH, transtornos de ansiedade social, entre outros. Muitas pessoas com esses distúrbios têm habilidades superiores à média: a pesquisa mostra que alguns deles, como autismo e dislexia, podem conferir habilidades especiais em reconhecimento de padrões, memória ou matemática. No entanto, as pessoas afetadas muitas vezes lutam para se ajustar ao perfil buscado pelos empregadores.
Pessoas neurodiversas frequentemente precisam de adaptações no local de trabalho — como fones de ouvido para evitar superestimulação auditiva — para ativar ou alavancar ao máximo suas habilidades. Às vezes, elas são excêntricas. Em muitos casos, as adaptações e as dificuldades são manejáveis, com perspectiva de ótimos retornos. Mas, para obter esses benefícios, a maioria das empresas precisaria ajustar suas políticas de seleção, recrutamento e desenvolvimento de carreira para chegar a uma definição mais ampla de talento.
Um número crescente de empresas proeminentes, como SAP, Hewlett Packard Enterprise (HPE), Microsoft, Willis Towers Watson, Ford e EY, reformou seus processos de RH para ter acesso aos talentos neurodiversos. Outras, como Caterpillar, Dell Technologies, Deloitte, IBM, JPMorgan Chase e UBS, já iniciaram o processo ou estudam possibilidades. Tivemos amplo acesso aos programas de neurodiversidade na SAP, HPE e Specialisterne (empresa de consultoria dinamarquesa pioneira nesses programas) e interagimos com pessoas da Microsoft, Willis Towers Watson e EY.
Embora os programas ainda estejam nos primórdios — o da SAP, o mais antigo entre as grandes empresas, tem apenas quatro anos —, muitos gestores afirmam que já estão percebendo os retornos, que vão muito além de melhora da reputação: melhora da qualidade e aumento da produtividade, das capacidades inovadoras e do envolvimento dos funcionários. Nick Wilson, o diretor-gerente da HPE South Pacific — organização com um dos maiores programas do tipo —, diz que nenhuma outra iniciativa na sua empresa oferece benefícios em tantos níveis diferentes.
O benefício mais surpreendente é talvez o fato de que os gestores começaram a refletir mais profundamente sobre como alavancar os talentos de todos os funcionários e dessa forma ser mais sensíveis às necessidades individuais. O programa da SAP “nos força a conhecer a pessoa melhor, e assim você aprende a lidar com elas”, diz Silvio Bessa, vice-presidente sênior de serviços de negócios digitais. “Sem dúvida, ele fez de mim um gerente melhor.”
Por que a neurodiversidade representa oportunidades
“Neurodiversidade é a ideia de que diferenças neurológicas como autismo e TDAH são o resultado de uma variação normal e natural no genoma humano”, escreve John Elder Robison — pesquisador visitante e copresidente do Neurodiversity Working Group no College of William & Mary — em um blog no site da revista Psicology Today. Robison, ele mesmo portador da síndrome de Asperger, acrescenta: “Muitos que abraçam o conceito da neurodiversidade acreditam que pessoas diferentes não precisam ser curadas — elas precisam de ajuda e acolhimento”. Estamos de pleno acordo.
Todos são, em certo grau, diferentes em suas capacidades (ou “differently abled”, expressão aprovada por muitos neurodiversos), porque nascemos diferentes e crescemos de forma diferente. Nossa maneira de pensar resulta tanto de nossas “máquinas” inatas quanto das experiências que nos “programam”.
A maioria dos gestores conhece as vantagens que as organizações podem obter com a diversidade de experiências, formação disciplinar, gênero, cultura e certas qualidades individuais dos funcionários. Os benefícios da neurodiversidade são semelhantes, mas mais diretos. Por terem cérebro programado diferentemente do cérebro dos “neurotípicos”, os neurodiversos podem trazer novas perspectivas para empresas que buscam criar ou reconhecer valor. Na HPE, testadores de software neurodiversos observaram que os projetos de um cliente pareciam sempre entrar em crise antes do lançamento. Como os neurodiversos não aceitam a desordem, questionaram vigorosamente a aparente tolerância da empresa ao caos. Isso levou esse cliente a perceber que havia de fato se tornado muito tolerante a essas crises e, com a ajuda dos testadores, reprojetou com sucesso o processo de lançamento. Na SAP, um analista neurodiverso de suporte ao cliente localizou uma oportunidade para que os clientes ajudassem, eles próprios, a resolver um problema comum — posteriormente, milhares passaram a usar os recursos criados por ele.
A população neurodiversa, porém, ainda é uma reserva de talentos praticamente inexplorada. O desemprego pode chegar a 80% (incluindo pessoas com distúrbios mais graves, não beneficiadas pelos programas de neurodiversidade). Mesmo quando trabalham, neurodiversos altamente capazes não raro são subaproveitados. Participantes do programa nos contaram numerosas histórias de como, apesar das credenciais sólidas, tiveram de se contentar com empregos que as pessoas geralmente deixam para trás no ensino médio. Quando a SAP começou seu programa Autismo no Trabalho, havia entre os candidatos pessoas com mestrado em engenharia elétrica, bioestatística, estatísticas econômicas e antropologia, e bacharelado em ciência da computação, matemática aplicada e computacional, engenharia elétrica e engenharia física. Alguns tinham dois diplomas. Muitos tinham notas altas e foram aprovados com louvor ou outras distinções. Um deles tinha uma patente.
Não surpreende, portanto, que, quando autistas com credenciais desse tipo conseguem ser contratados, muitos se revelam capazes, e alguns são excelentes. Nos últimos dois anos, o programa da HPE colocou mais de 30 participantes em funções de teste de software no Departamento de Serviços Humanos (DHS) da Austrália. Os resultados preliminares sugerem que as equipes de teste neurodiversas da organização são 30% mais produtivas que as demais.
Inspirado pelo sucesso no DHS, o Departamento de Defesa australiano está agora trabalhando com a HPE para desenvolver um programa de neurodiversidade em cibersegurança. Os participantes vão usar suas habilidades superiores de detecção de padrões em determinadas tarefas, como exame de registros e fontes de dados desordenados em busca de sinais de invasão ou ataque. Usando métodos de avaliação emprestados das Forças de Defesa de Israel (IDF), o Departamento e Defesa encontrou candidatos cujas habilidades relevantes estão muito acima da média. (A Unidade de Inteligência Especial número 9900 do IDF, que analisa imagens aéreas e de satélite, tem um grupo composto principalmente de autistas. Eles conseguem detectar padrões que os neurotípicos não percebem.)
O argumento favorável à contratação de neurodiversos é especialmente convincente dada a escassez de habilidades que cada vez mais aflige a tecnologia e outros setores. A União Europeia, por exemplo, enfrentará uma escassez de 800 mil trabalhadores de TI até 2020, de acordo com estudo da Comissão Europeia. Esperam-se os maiores déficits em áreas de importância estratégica e em rápida expansão, como anlytics de dados e implementação de serviços de TI, cujas atribuições combinam bem com as habilidades de alguns neurodiversos.
Por que tantas empresas não aproveitam o talento neurodiverso
O que as impede de admitir pessoas com habilidades de que tanto precisam? A resposta está na forma como encontram e recrutam talentos e decidem quem vão contratar (e promover).
Especialmente nas grandes empresas, os processos de RH são desenvolvidos com foco na aplicação ampla em toda a organização. Mas há um conflito entre capacidade escalável e meta de contratar neurodiversos. “A SAP foca em processos escaláveis de RH. No entanto, se tivéssemos de usar os mesmos processos para todos, deixaríamos de fora os autistas”, diz Anka Wittenberg, chefe de diversidade e inclusão da SAP.
Além disso, o comportamento de muitos neurodiversos contraria as noções comuns sobre o bom empregado — aquele que trabalha bem em equipe, tem amplas habilidades de comunicação, inteligência emocional, poder de persuasão e personalidade de vendedor; tem facilidade de fazer networking, segue práticas padronizadas sem precisar de adaptações especiais, e assim por diante. Esses critérios excluem, sistematicamente, as pessoas neurodiversas.
Mas eles não são a única maneira de fornecer valor. Nas últimas décadas, competir com base na inovação tem se tornado crucial para muitas empresas. A inovação as leva a adicionar variedade na mistura, incluindo pessoas e ideias “fronteiriças”, como a SAP explica no press release do programa. Ter pessoas que enxergam as coisas de forma diferente e que talvez não se encaixam na perfeição “ajuda a compensar nossa tendência, como grande empresa, de olhar todos na mesma direção”, diz Bessa.
Você pode pensar que as organizações poderiam simplesmente procurar maior variedade nos funcionários prospectivos, mas mantendo suas práticas de recrutamento, contratação e desenvolvimento. Muitos têm adotado essa abordagem: seus gestores ainda trabalham de cima para baixo, das estratégias para as capacidades necessárias, traduzindo-as em funções organizacionais, descrição de funções e listas de recrutamento. Mas dois grandes problemas fazem com que deixem escapar o talento neurodiverso.
O primeiro esbarra na abordagem universal e tradicional de recrutamento: a entrevista. Embora os neurodiversos sobressaiam em áreas importantes, muitos não se dão bem em entrevistas. Por exemplo, os autistas não costumam fazer bom contato visual, são propensos a digressões e podem ser excessivamente honestos sobre suas fraquezas. Alguns têm problemas de confiança decorrentes de dificuldades enfrentadas em entrevistas anteriores. Neurodiversos em geral têm menos probabilidade de ganhar pontuação maior em entrevistas que candidatos neurotípicos menos talentosos. A SAP e a HPE descobriram que podem levar semanas ou meses para constatar a alta qualidade de alguns participantes do programa (ou, igualmente importante, quais são suas limitações). Felizmente, como veremos, as entrevistas não são a única maneira de avaliar a aptidão do candidato.
O segundo problema, especialmente comum em grandes empresas, deriva do pressuposto de que os processos escaláveis requerem conformidade absoluta com abordagens padronizadas. Como mencionado, funcionários de programas de neurodiversidade precisam ser autorizados a se desviar de práticas estabelecidas. Isso muda a orientação do gestor, pois ele precisa ajustar contextos de trabalho individual sem, no entanto, infringir as normas da empresa. As acomodações providas de diferentes tipos de iluminação e com disponibilidade de fones de ouvido antirruído, por exemplo, não são muito caras em sua maioria. Mas isso exige que os gestores personalizem os locais de trabalho mais do que fariam habitualmente.
Como os pioneiros estão mudando o jogo da gestão de talentos
Tradicionalmente, a indústria de tecnologia contrata pessoas excêntricas. O nerd talentoso sem traquejo social se tornou um ícone cultural, uma parte da mitologia da indústria tanto quanto a empresa que começa na garagem. Em seu livro NeuroTribes, Steve Silberman demonstra que a incidência de autismo é particularmente alta em lugares como o Vale do Silício (por razões não completamente compreendidas). Ele e outros levantaram a hipótese de que muitos dos “excêntricos” e “nerds” da indústria poderiam muito bem estar “no espectro”, mas sem o diagnóstico. Contratar a neurodiversidade, então, poderia ser visto como uma extensão das tendências da cultura que reconhece o valor dos nerds. Nos últimos anos, algumas empresas pioneiras formalizaram e profissionalizaram essas tendências. Embora seus programas variem, elas têm elementos em comum, principalmente por se basearem no conjunto de conhecimentos desenvolvido na Specialisterne. Thorkil Sonne fundou a empresa em 2004, motivado pelo diagnóstico de autismo de seu terceiro filho. Ao longo dos anos seguintes, desenvolveu e aprimorou métodos de avaliação sem entrevista, treinou e gerenciou talentos neurodiversos e demonstrou a viabilidade de seu modelo gerindo uma empresa focada em testes de software muito bem-sucedida.
Insatisfeito com a baixa capacidade de sua empresa de gerar emprego, Sonne fundou a Specialist People Foundation (recentemente renomeada Specialisterne Foundation) em 2008 para divulgar o know-how de sua empresa e persuadir multinacionais a iniciar programas de neurodiversidade. A maioria das empresas que o fizeram trabalhou com a fundação para introduzir alguma versão da abordagem da Specialisterne. Ela tem sete elementos principais:
Conte com “parceiros sociais” para conseguir as capacidades que você não tem. Muitos gestores de empresas de tecnologia sabem muito sobre muitas coisas, mas geralmente não são especialistas em autismo ou outros tipos de neurodiversidade. Além disso, hesitam em estender suas atividades para a vida particular dos funcionários, uma vez que neurodiversos podem precisar de ajuda adicional.
Para preencher essas lacunas, as empresas que estudamos se associaram com “parceiros sociais” — governos ou organizações sem fins lucrativos (ONGs) comprometidos em ajudar as pessoas com deficiência a arrumar emprego. A SAP trabalhou com o Departamento de Reabilitação da Califórnia, com o Departamento de Reabilitação Profissional da Pensilvânia, com a ONG EXPANDability, dos Estados Unidos, e com agências como a EnAble India; a HPE trabalhou com a Autism SA (sul da Austrália). Esses grupos ajudam as empresas a navegar pelos regulamentos de emprego locais para pessoas com deficiência, sugerem candidatos de listas de pessoas neurodiversas que procuram emprego, ajudam na pré-seleção, auxiliam na obtenção de financiamento público para treinamento, promovem treinamento e fornecem orientação e apoio contínuo (especialmente fora do horário de trabalho) para garantir que os funcionários neurodiversos tenham êxito. Na Alemanha, o reconhecimento dos benefícios de tirar as pessoas da assistência pública e colocá-las em empregos que geram receitas fiscais motivou o financiamento público de cargos cuja função é apoiar a retenção de funcionários neurodiversos. As estimativas dos benefícios que um governo ganha transformando essas pessoas em trabalhadores de TI e contribuintes variam, mas chegam à ordem de US$ 50 mil por pessoa por ano.
Use processos de avaliação não tradicionais e sem entrevista. Para isso, a Specialisterne criou os “hangouts” — encontros confortáveis, geralmente de um dia, nos quais os candidatos neurodiversos podem demonstrar suas habilidades em interações casuais com os gestores da empresa. No final de um hangout, alguns candidatos são selecionados para duas a seis semanas de avaliação e treinamento adicional (a duração depende da empresa). Durante esse período, eles usam os kits de construção e programação robótica da Lego Mindstorms para trabalhar nos projetos designados — primeiro individualmente e depois em grupos; vale dizer que os projetos se tornam cada vez mais parecidos com o trabalho real conforme o processo avança. Algumas empresas têm sessões adicionais. A SAP, por exemplo, estabeleceu um módulo de “habilidades interpessoais” para ajudar candidatos ao primeiro emprego a se familiarizar com as normas do ambiente profissional. Esses esforços são tipicamente financiados pelo governo ou sem fins lucrativos. Os estagiários geralmente são pagos.
Apesar das dificuldades sociais vivenciadas por muitos neurodiversos, eles geralmente apresentam, durante o período de avaliação baseada em projetos, comportamentos complexos de colaboração e apoio. Na HPE, por exemplo, os grupos foram convidados a conceber um sistema robótico confiável de dispensação de pílula. Durante a apresentação das soluções, um candidato ficou paralisado. “Desculpe, não consigo fazer isso”, disse ele. “As palavras estão todas embaralhadas na minha cabeça.” Seus colegas de equipe neurodiversos correram em seu socorro, tranquilizando-o, e ele conseguiu terminar.
Ao estender o processo de avaliação, esses programas permitem que as capacidades dos candidatos venham à tona. Há, naturalmente, outras maneiras de fazer isso. A HPE começou a adotar estágios que incluem elementos semelhantes.
Treine outros funcionários e gestores. Sessões de treinamento curtas (algumas de apenas meio dia) e leves ajudam os funcionários a entender o que esperar de seus novos colegas — por exemplo, que eles talvez precisem de acomodações especiais e podem parecer diferentes. Os gestores recebem treinamento um pouco mais extenso para familiarizar-se com os canais de apoio ao funcionário do programa.
Prepare um ecossistema de apoio. Empresas com programas neurodiversos projetam e mantêm sistemas de apoio simples para seus novos funcionários. A SAP define dois “círculos de apoio”: um para o local de trabalho, outro para a vida pessoal do empregado. O círculo de apoio no local de trabalho inclui um gerente de equipe, um companheiro de equipe, um coach profissional e de habilidades pessoais, um mentor de trabalho e um “parceiro de negócios de RH”, que supervisiona um grupo de participantes do programa. Os companheiros são membros da mesma equipe que prestam assistência com tarefas diárias, gerenciamento de carga de trabalho e priorização. O coach profissional e o de habilidades pessoais geralmente são de organizações sociais parceiras. Outras funções de parceiros sociais incluem o conselheiro de reabilitação profissional e conselheiro pessoal. Em geral também as famílias dos funcionários oferecem apoio.
A HPE adota uma abordagem diferente. Ela coloca novos funcionários neurodiversos em “turmas” de 15 pessoas em média, nas quais eles trabalham ao lado de colegas neurotípicos na proporção de 4: 1, e dois gerentes e um consultor são encarregados de abordar questões relacionadas à neurodiversidade.
Customize métodos para gerenciar carreiras. Tal como outros trabalhadores, funcionários contratados por esses programas precisam de planos de carreira a longo prazo. Isso exige uma reflexão séria sobre a avaliação e o desenvolvimento contínuos que levarão em conta as circunstâncias especiais do emprego neurodiverso. Felizmente, ao longo do tempo, os supervisores costumam adquirir uma boa noção dos talentos e limitações dos funcionários do programa. Os participantes passam pelas mesmas avaliações de desempenho dos outros funcionários, mas os gerentes trabalham dentro desses processos para estabelecer metas específicas. Embora alguns objetivos possam estar relacionados com o distúrbio neurológico dos participantes, não há complacência com desempenho insatisfatório. Pelo contrário, os funcionários neurodiversos devem satisfazer ainda mais requisitos que os demais, pois, além dos objetivos do programa, devem cumprir os objetivos de desempenho esperados de qualquer pessoa em sua função.
Alguns participantes rapidamente demonstram potencial para se integrar na organização principal e avançar na carreira. As turmas da HPE são projetadas para fornecer um ambiente no qual os participantes possam desenvolver habilidades que lhes permitam bom desempenho e, eventualmente, a transição de suas turmas para empregos mais tradicionais.
Dimensione o programa. A SAP anunciou que, até 2020, pretende tornar 1% de sua força de trabalho neurodiversa — porcentagem escolhida por ser praticamente a mesma de adultos autistas na população. A Microsoft, a HPE e outras empresas estão trabalhando para ampliar seus programas, embora não tenham definido metas numéricas. É mais fácil expandir o emprego em áreas como teste de software, analytics de negócios e cibersegurança, cujas tarefas combinam bem com os talentos dos neurodiversos. A SAP, porém, colocou seus mais de 100 funcionários do programa em 18 funções. “A expectativa original, como eu entendi, era que esses colegas se concentrassem principalmente no trabalho repetitivo, como teste de software”, disse um gestor. Mas, na prática, eles têm sido capazes de agregar valor em um leque muito mais amplo de funções, como gestor de produtos, que coordena o desenvolvimento de novas ofertas da SAP; associado de serviços de RH, que organiza e planeja atividades de RH; consultor associado, que ajuda os clientes a aplicar soluções da SAP a problemas de negócios; e apoio ao cliente, que atende clientes por telefone para ajudá-los a usar os softwares da SAP. Os dois últimos desmentem o mito de que autistas não podem realizar trabalhos que exigem habilidades sociais.
A HPE está alocando nove especialistas neurodiversos de cada vez, nas turmas, para clientes — na verdade, está vendendo pacotes de capacidades avançadas derivadas da neurodiversidade. O modelo tem intrigantes possibilidades de escala, não só porque muitos trabalhadores são contratados ao mesmo tempo, mas porque as demandas dos clientes ampliam o número de vagas possíveis.
Incorpore o programa. O sucesso dos programas de neurodiversidade levou algumas empresas a reconhecer que processos comuns de RH excluem talentos de alta qualidade. A SAP está realizando uma avaliação para estender o escopo das fases de recrutamento, contratação e desenvolvimento. Seu objetivo declarado é tornar seus principais processos de talentos tão “receptivos à neurodiversidade” que, em última instância, possam fechar seu programa de neurodiversidade. A Microsoft tem ambições semelhantes.
As empresas desfrutaram de uma surpreendente variedade de benefícios derivados dos programas de neurodiversidade. Alguns são simples: elas agora localizam e contratam pessoas capazes, ou até grandes talentos, para competências que de outra forma seriam difíceis de suprir. Produtos, serviços e resultados têm apresentado menores taxas de defeito e maior produtividade. Tanto a SAP como a HPE relatam exemplos de participação de funcionários neurodiversos em equipes que geraram inovações significativas (uma, na SAP, ajudou a desenvolver uma correção técnica que gerou economia no valor estimado de US$ 40 milhões).
Alguns benefícios são mais sutis. Um executivo nos disse que os esforços para tornar a comunicação corporativa mais direta — e dessa forma dar conta das dificuldades que os funcionários autistas têm com nuance, ironia e outras sutilezas de linguagem — melhoraram a comunicação global. As tendências perfeccionistas de algumas turmas de teste de software da HPE levaram os clientes a aumentar o nível de exigência e deixar de encarar problemas comuns como inevitáveis. Além disso, o engajamento dos funcionários aumentou em áreas relacionadas com os programas: pessoas neurotípicas relatam que o envolvimento torna seu trabalho mais significativo e seu moral mais elevado. E indicações iniciais sugerem que os funcionários do programa, gratos pela oportunidade, são muito leais e têm baixas taxas de rotatividade.
Por fim, não se deve esquecer que os programas permitem que as empresas colham os frutos da boa reputação. As empresas pioneiras foram reconhecidas pelas Nações Unidas como exemplos de gestão responsável e conquistaram prêmios globais de cidadania corporativa.
Desafios
É claro que as empresas que implementam programas de neurodiversidade enfrentam desafios. Embora existam muitos candidatos em potencial, muitos são difíceis de identificar, porque as universidades — atentas às questões de discriminação — não classificam os alunos em termos de neurodiversidade, e os potenciais candidatos não necessariamente se autoidentificam. Em resposta, a HPE está ajudando faculdades e escolas a preparar programas de “experiência de trabalho” não tradicionais para populações neurodiversas. Eles incluem jogos de vídeo, programação robótica e outras atividades. A Microsoft também está colaborando com universidades para melhorar os métodos de identificação e acesso a talentos neurodiversos.
Outra dificuldade comum são as esperanças frustradas de candidatos que não são selecionados — uma circunstância inevitável que deve ser tratada com cuidado. Em uma empresa, os pais cujo filho não se qualificou para um trabalho escreveram para o CEO, compreensivelmente decepcionados, pois o programa havia criado expectativas de que ele finalmente conseguiria um emprego significativo. Alguns executivos ficaram preocupados, pois isso poderia criar um potencial problema de relações públicas. No fim, uma conversa abrangente entre os pais desse candidato e os gestores do programa — alguns dos quais tinham famílias que haviam experimentado problemas semelhantes — acalmou a situação.
Podem surgir também questões relacionadas com a Justiça e as normas de interação. Em um caso que encontramos, um participante do programa que sofria com o excesso de estímulos ganhou um escritório próprio, enquanto quatro pessoas em um departamento próximo ficavam espremidas em um espaço semelhante, gerando queixas. Mas tudo chegou a bom termo quando uma explicação foi oferecida. Também ouvimos falar de casos em que a honestidade excessiva, típica dos autistas, causava irritação. Um deles dizia respeito a um funcionário do programa que disse a um colega: “Você é incompetente”. O treinamento de gerentes e mentores pode ajudar a lidar com esse tipo de situação.
Alguns supervisores relataram que o programa gerou trabalho adicional para eles. Por exemplo, a tendência perfeccionista de alguns participantes dificultou na hora de discernir quais problemas valia a pena consertar, quais não, e quais exigiam busca de orientação adicional.
Gerenciar o estresse dos funcionários neurodiversos é outro desafio. Ouvimos relatos de que eventos inesperados e incontroláveis como interrupções de sistemas que interferiram com a rotina de trabalho causavam níveis anormalmente altos de ansiedade entre os participantes. Muitos entrevistados enfatizaram a necessidade de ser sensível ao estresse dos funcionários do programa. Para mantê-lo sob controle, alguns participantes trabalham apenas em tempo parcial — uma limitação que pode criar problemas, especialmente quando os prazos se aproximam.
Para lidar com essas situações, as organizações precisam de pessoas que possam detectar e resolver os problemas antes que saiam do controle. Muitos gerentes disseram que, com esses e outros apoios, eles poderiam realizar seu trabalho de forma relativamente normal. E, ao contrário dos seus pressupostos iniciais, os gerentes da SAP descobriram que eles poderiam até mesmo supervisionar os participantes do programa remotamente, desde que os companheiros e mentores fornecessem suporte localmente.
Uma grande mudança na gestão de pessoas
Programas de neurodiversidade induzem empresas e líderes a adotar um estilo de gestão que coloca cada pessoa em um contexto que maximize suas contribuições.
A SAP usa uma metáfora para comunicar essa ideia em toda a organização: pessoas são como peças de quebra-cabeça, com formas irregulares. Historicamente, as empresas pediam aos funcionários que aparassem suas irregularidades, porque é mais fácil encaixar as pessoas se todas são retângulos perfeitos. Mas isso exige que os funcionários deixem suas diferenças em casa — diferenças de que as empresas precisam para inovar. “O mundo corporativo quase não aproveitou esse benefício”, observa Anka Wittenberg.
Isso sugere que as empresas devem adotar uma filosofia alternativa, que exija dos gestores o trabalho duro de montar peças irregulares de quebra-cabeça, tratando as pessoas não como recipientes de recursos humanos fungíveis, mas como ativos individuais únicos. Para os gerentes o trabalho será mais difícil. Mas para as empresas o retorno será considerável: o acesso a mais talentos, junto com perspectivas diversas que podem ajudá-los a competir de forma mais eficaz. “É mais provável”, observa Wittenberg, “que a inovação venha de partes de nós que não compartilhamos”.
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Robert D. Austin é professor de sistemas de informação da Ivey Business School e coautor de The adventures of an IT leader — Harvard Business Review Press, 2016. Gary P. Pisano é professor da cátedra Harry E. Figgie e membro do U. S. Competitiveness Project na Harvard Business School.
Fonte: HBR