Tina se encontrava numa encruzilhada. Sua filha havia saído de casa recentemente para cursar a universidade e seu marido tinha suas próprias atividades. E embora em outras épocas ela curtisse a área bancária, agora havia perdido o interesse pelo trabalho. Até chegou a pensar, em certo momento, se deveria pedir demissão. Mas o que seus colegas e o chefe pensariam dela?
Essa linha de pensamento a levou a reflexões mais profundas e reveladoras. E se todas as suas escolhas, até então, tivessem sido feitas para corresponder ao que os outros esperavam dela? Ela tinha sido sempre a menina dos olhos dos pais – aluna exemplar que se casou com um homem que eles aprovavam e seguiu os mesmos passos de seu pai e de seu avô na empresa. Atualmente com 45 anos, ela se perguntava se essas escolhas foram realmente escolhas falsas, dada a pressão que a família exercia sobre ela. E ainda mais assustador: que outras opções ela teria nessa altura da vida?
Tina se questionava cada vez mais. De onde vinha tudo isso? Haveria uma parte escondida de sua personalidade que ela não entendia – ou talvez nem sequer suspeitasse? Ela se lembrou de como, na adolescência, sempre se preocupava com o que as pessoas queriam que ela fizesse; e o que queriam que ela fosse. Talvez agora tivesse chegado a hora de rever essas questões – de analisar honestamente o que ela realmente queria ter feito, e não o que os outros esperavam que ela fizesse. O que a “verdadeira Tina” realmente quer?
A ideia de um “eu verdadeiro” e de um “falso eu” ou de um “eu sombra” há muito tempo preocupa os psicólogos. Carl Jung, por exemplo, introduziu a noção de “lado sombrio” de nossa personalidade. Ele via “a sombra” como nosso lado obscuro desconhecido – formado pelas emoções humanas primitivas, negativas, socialmente depreciadas como sexualidade, luta pelo poder, egoísmo, ganância, inveja, ciúme e raiva. Mas embora a sombra personifique tudo o que tememos e, portanto, nos recusamos a reconhecer, ela continua parte de nós. Jung acreditava que, a menos que cheguemos a um acordo com nosso lado sombrio, estamos condenados a nos tornar sua vítima involuntária.
De forma semelhante, Erik Erikson, outro psicólogo famoso, introduziu a ideia de crise de identidade. Erikson, como Jung, sugere que a formação da identidade tem seu lado negro e negativo. Há partes de nós que são atraentes, mas perturbadoras, por isso tendem a estar submersas. No processo de nos tornar adultos, não só internalizamos o que é visto como aceitável, como também internalizamos (mesmo que apenas subliminarmente) atitudes parentais e sociais sobre qualidade e características indesejáveis. Para muitos de nós, esses “indesejáveis” se transformam em “frutos proibidos” – coisas para as quais somos atraídos, e para nos sentirmos mais autênticos devemos integrar esses frutos proibidos ao nosso senso de identidade.
Donald Winnicott aperfeiçoou a ideia do “verdadeiro” e do “falso” eu. Ele explicou que desde a infância, em resposta a ameaças que colocam em risco nosso bem- estar, todos nós desenvolvemos uma estrutura defensiva que pode evoluir num “falso eu”. Ele sugere que se nossas necessidades básicas não forem identificadas – não espelhadas para nós por nossos pais –, poderemos presumir que não são importantes. Ao satisfazermos os desejos de nossos pais, frequentemente reprimimos nossos próprios desejos, não realizando o que realmente gostaríamos de ser ou fazer. Acreditamos que a não conformidade põe em risco nosso papel na família. Além disso, podemos internalizar os sonhos de nossos pais de autoglorificação por meio de nossas realizações. Mas essa aquiescência aos desejos de outros é uma mentira emocional. Ela impõe o ônus de reprimir nossas próprias necessidades. Em nosso esforço de agradar aos outros, escondemos e negamos nosso “verdadeiro eu”, o que, por sua vez, leva ao autodistanciamento. Nesse caso, o “falso eu” leva a melhor. Ele torna-se uma armadura defensiva para manter o “verdadeiro eu” a distância e escondido.
Se houver uma discrepância muito grande entre o “verdadeiro eu” e o “falso eu”, o senso de identidade estará vulnerável. E se não formos capazes de adquirir um senso de identidade estável, poderemos acabar descobrindo isso um dia, como aconteceu com Tina. Depois de uma vida inteira satisfazendo as expectativas dos outros, Tina estava passando pelo que Erikson chamou de crise de identidade tardia. Em certo momento da vida ficou difícil para ela continuar com a mentira.
O caso de Tina também ilustra que a jornada da exploração da identidade que geralmente começa na adolescência não para aí. No caso dela, a tensão entre o “verdadeiro eu” e o “falso eu” veio à tona, contribuindo para uma renovação da confusão que ela havia experimentado num estágio anterior da vida. Não viver uma vida completa, inteira – não integrar todas essas partes de si mesma: chame-a sua sombra ou identidade negativa –, mostrou-se extremamente extenuante, contribuindo para escolhas de vida que não acomodavam suas verdadeiras necessidades. Ao ignorar seu lado sombrio, Tina consumiu uma quantidade enorme de energia, esgotando-a e a sua criatividade interna, o que contribuiu para vários sintomas de estresse, incluindo reações depressivas.
Mas “a volta do reprimido” não deve ser vista como uma experiência puramente negativa. Embora uma pessoa possa ver essas partes de si mesma como uma representação de sua vida não vivida, uma crise de identidade tardia também pode conter as sementes da renovação psicológica – a motivação para seguir novos rumos na vida. Cortejar sua sombra – aceitar essas partes não vividas de si mesmo e aprender a ler as mensagens nelas contidas – pode levar a um nível mais profundo de consciência, e ser uma centelha para a própria imaginação. Quando uma pessoa está pronta para aceitar essas partes – e não tenta afastá-las – ela descobre uma infinidade de ideias criativas positivas implorando para ser satisfeitas. Esses desejos enterrados a ajudarão a refletir não só sobre a questão “quem sou eu? ”, mas também “quem quero ser? ”. Isso poderá se tornar uma espiral negativa de autopiedade às avessas.
Foi isso que aconteceu com a Tina. Ela começou a rever as experiências de sua vida passada. Ela capturou seus sonhos numa revista e escreveu sobre as associações que chegaram até ela. Ela escreveu cartas ao seu eu passado e futuro. Ela contou ao marido seus sonhos e as emoções que eles evocavam. Juntos, conversaram sobre seus sentimentos, frustração e ansiedade. Seu marido começou a partilhar alguns de seus sonhos com ela. As conversas finalmente foram tomando rumo mais consistente à medida que eles discutiam seu futuro juntos, incluindo carreiras, finanças e futuras escolhas de vida. A autoexploração de Tina tornou-a mais consciente tanto de seu cenário interno como de que sua vida tinha sido até aquele momento.
Com confiança renovada e revigorada, Tina analisou criticamente suas responsabilidades de trabalho e encontrou alternativas de mudanças que beneficiariam tanto a si própria como ao banco. Ela até conseguiu argumentar com seu pai sobre política durante o jantar, e para sua grande surpresa ele pareceu respeitar sua opinião.
A maioria de nós considera essa tarefa difícil e confusa, como foi para Tina. Mas aprender a distinguir nossos demônios internos pode ser libertador. Questionar, refletir e manter conversas construtivas com pessoas importantes em nossa vida nos ajuda a fazer as pazes com nosso lado sombrio e a criar a reaproximação necessária entre nosso “falso eu” e nosso “eu verdadeiro”. Para isso, precisamos descobrir como aceitar o que aprendemos sobre nós mesmos, sem julgamento. E isso significa ter de abordar o autoconhecimento com curiosidade, como se ele fosse uma aventura fascinante – uma exploração das riquezas contidas nesse mundo até então desconhecido dentro do eu.
Manfred F. R. Kets de Vries é psicanalista, coach de executivos e estudioso da administração. É professor titular de desenvolvimento de liderança e mudança organizacional do Insead, na França, Singapura e Abu Dhabi. Seu livro mais recente é Mindful leadership coaching: journey into the interior (Palgrave Macmillan, 2014), não traduzido.
Fonte: HBR