O assédio sexual tira o poder das mulheres no local de trabalho. Veja como quebrar o ciclo.
Tudo começou com duas palavras. Em outubro de 2017, a atriz Alyssa Milano tuitou: “Se você foi assediada ou agredida sexualmente, escreva “eu também” como resposta a esse tweet”. Mais de uma década depois de Tarana Burke lançar o movimento Me Too para apoiar as sobreviventes de agressão sexual, milhões compartilharam a hashtag #MeToo e o assunto tomou conta das manchetes. Mulheres no setor de entretenimento responderam com mais três palavras: chegou a hora.
Em janeiro de 2018, antes do lançamento da organização TIME’S UP, 700 mil trabalhadoras da Alianza Nacional de Campesinas enviaram uma carta para prestar solidariedade às atrizes que fizeram denúncias. Os dois grupos logo se uniram, junto com outras mulheres de baixa renda que sofreram em silêncio assédio sexual e já lutavam por segurança, equidade e dignidade no local de trabalho. Como disse Oprah Winfrey, em poderosa declaração no Globo de Ouro, o assédio sexual “transcende qualquer cultura, geografia, raça, religião, política ou local de trabalho”.
O assédio sexual é ao mesmo tempo o produto e a causa da falta de poder que prejudica as mulheres em todos as áreas, da agricultura à tecnologia, e em todas as fases da carreira, desde o emprego de nível básico até os cargos de liderança. Ficou claro para os fundadores da TIME’S UP — e para mim, por ter uma carreira de trabalho pela igualdade de gênero — que derrubar um agressor, ou mesmo muitos, não interromperá o assédio sexual. Em vez disso, resolver o problema exige um esforço deliberado para enfrentar as barreiras que ameaçam tanto a segurança quanto a equidade, incluindo discriminação, disparidade salarial, responsabilidades desiguais no cuidado familiar e normas e estereótipos negativos.
Acabar com o assédio não é um objetivo isolado; é essencial para acabar com outras formas de desigualdade de gênero. Desde o início, a proposta e a missão da TIME’S UP têm sido unir-se a todas as mulheres, que fazem todo tipo de trabalho, em um esforço conjunto para exigir um trabalho seguro, justo e digno.
COMO O ASSÉDIO ATRASA AS MULHERES — E OS NEGÓCIOS
De acordo com a Comissão de Igualdade de Oportunidades de Emprego, até 85% das mulheres nos Estados Unidos relatam ter sofrido assédio sexual no trabalho. Nenhum setor está imune, mas uma análise recente de mais de 85 mil acusações de assédio entre 2005 e 2015 constatou que as taxas mais altas estão nos setores de hotelaria e alimentação, seguidos pelas áreas de varejo, manufatura, saúde e assistência social — setores nos quais as mulheres, especialmente as mulheres negras, estão super-representadas.
O assédio sexual é devastador no plano pessoal e prejudicial economicamente. Mulheres que sofrem assédio sexual no trabalho têm seis vezes mais chances de mudar de emprego, geralmente para áreas menos desejáveis e com salários mais baixos. Muitas mulheres que não deixam seus empregos enfrentam retaliação econômica, incluindo cortes de salário ou demissão, se denunciarem o assédio.
Isso não é ruim apenas para as mulheres, mas também para os negócios. Para cada funcionária que é assediada, os empregadores perdem cerca de
US$ 22.500 em produtividade, além dos custos de rotatividade de funcionários, honorários legais e danos à reputação. A economia como um todo também sofre como resultado do enorme potencial perdido de mulheres que são perseguidas até saírem do emprego ou cujas carreiras são paralisadas, às vezes antes mesmo de começar.
O assédio sexual não ocorre no vácuo. Está enraizado em discriminação, barreiras e preconceitos mais amplos. Nos Estados Unidos, as mulheres recebem, em média, apenas 80 centavos de dólar para cada dólar pago aos homens. Quando o salário é agrupado por raça, a diferença pode ser ainda maior: enquanto as mulheres brancas recebem 77 centavos de dólar, as mulheres negras recebem 61 centavos, as índias, 58 centavos e as latinas, apenas 53 centavos. As mulheres são super-representadas em empregos de baixo salário e sub-representadas em papéis de liderança. Elas também assumem maiores responsabilidades ao cuidar de crianças e pais idosos, o que pode comprometer sua capacidade de ganhar a vida ou avançar na carreira.
Por fim, o assédio sexual está profundamente imbricado com essas outras formas de discriminação e desigualdade. Também faz com que seja difícil para as mulheres defender melhores condições de trabalho. Devemos ir muito além de fortalecer e aplicar leis e políticas de assédio sexual para enfrentar a desigualdade que cria as condições em que ele germina. Focar o assédio significa também se concentrar em questões como igualdade de salário, licença-parental e médica remunerada (veja “Todo funcionário deve ter acesso à licença parental paga”, na página 36), assistência infantil acessível e discriminação da gravidez. E devemos continuar promovendo o aumento da representação feminina — e de mulheres negras, em particular — em papéis de liderança e gestão e garantir dignidade em todos os tipos de emprego. Através dessas ações, podemos começar a nivelar o campo.
O assédio sexual e a discriminação mais ampla prejudicam as mulheres, tornando mais difícil para elas obter sucesso e, em um ciclo vicioso, contribui para o desequilíbrio de poder que permite que o assédio e o abuso sexual continuem. Quebrar esse ciclo não é simples e exige mudanças nas leis, práticas comerciais e normas culturais.
COMO QUEBRAR O CICLO
Alterar leis. O século 20 foi marcado por um progresso constante e incremental em direção à igualdade das mulheres. Tudo começou com o sufrágio universal, seguido por uma importante legislação que proíbe a discriminação sexual na educação e no emprego, bem como a disparidade salarial baseada no sexo. Pela lei federal, o assédio sexual é ilegal nos Estados Unidos desde 1980.
Mas, para chegar à verdadeira igualdade, precisamos melhorar as leis federais e estaduais, fortalecendo, por exemplo, o caráter ilegal do assédio e aumentando as multas e o prazo para denúncia. Um avanço importante já está em andamento. Nos dois anos desde que o #MeToo se tornou viral, 15 estados aprovaram leis para reforçar a proteção contra o assédio sexual, incluindo Nova York, onde o TIME’S UP teve um papel ativo.
Também precisamos aproveitar o progresso recente para garantir remuneração igual e instituir outras políticas de apoio às mulheres que trabalham. Quarenta e nove estados possuem dispositivos legais de igualdade salarial e, neste ano, pelo menos oito estados aprovaram novas leis para mitigar a diferença salarial. No Congresso dos Estados Unidos, o Paycheck Fairness Act foi aprovado na Câmara dos Deputados com apoio bipartidário, embora a perspectiva no Senado seja incerta. Oito estados e o Distrito de Columbia promulgaram leis de licença médica e parental remunerada. Devemos aproveitar o ímpeto atual nos níveis estadual e federal para continuar fortalecendo leis de igualdade salarial e estendendo proteções a todos os funcionários, incluindo trabalhadores rurais, trabalhadores domésticos e contratados freelances; aprovar a licença médica e parental remunerada; garantir acesso a creche; e proteger contra a discriminação na gravidez.
Mude as práticas de negócios. O setor privado, que emprega a maioria das mulheres nos Estados Unidos, não precisa esperar para adotar novas exigências legais. Algumas empresas tomaram a dianteira: um número crescente de executivos de nível de diretoria considera que sua missão inclui a responsabilidade social, e isso inclui, necessariamente, o fim do assédio sexual e da desigualdade no local de trabalho. As políticas de empresas que promovem segurança e equidade são boas para os trabalhadores, para as mulheres e para o resultado da empresa.
Algumas empresas já estão tentando implementar mudanças, mas outras precisam de um empurrãozinho. Serão necessárias cooperação e pressão externa. Por exemplo, por meio do Fundo de Defesa Legal da TIME’S UP, apoiamos trabalhadores que denunciaram o McDonald’s por assédio, abuso e retaliação. Um ano depois, como nenhuma providência foi tomada, a TIME’S UP divulgou uma carta aberta à liderança do McDonald’s, assinada por milhares de indivíduos e uma coalizão de advogados, exigindo que a empresa agisse para acabar com o assédio e a retaliação em seus restaurantes. Recentemente, prestamos solidariedade aos atletas que acusaram a Nike de discriminação de gravidez no contrato de patrocínio. Após constante pressão do público, a Nike anunciou que não iria suspender os atletas ou reduzir o pagamento por causa de gravidez ou faltas devido a cuidado parental, e outras empresas esportivas fizeram promessas semelhantes. Recentemente, demos uma palestra na assembleia anual de acionistas da Alphabet, empresa controladora do Google, para pressioná-los a liberar dados de salário mediano, uma prática que precisa se tornar padrão para avaliar e abordar a diferença salarial de forma completa.
As empresas devem melhorar as políticas e o treinamento para evitar o assédio sexual e a retaliação, eliminar o preconceito e a discriminação, aumentar a diversidade de gênero e raça na liderança, eliminar
diferenças salariais e tornar as políticas familiares, como licença remunerada e assistência infantil, acessíveis aos seus trabalhadores.
Mude as normas culturais. A explosão do #MeToo representou um momento cultural poderoso, trouxe atenção sem precedentes ao assédio e abuso sexual e serviu como chamado à ação. Mas o trabalho seguro, justo e digno só se tornará realidade quando mudarem atitudes e comportamentos arraigados.
A mudança cultural de longo prazo depende de uma ampla evolução das normas sociais que, antes de mais nada, permitiram que o assédio sexual e a desigualdade de gênero perdurassem. A forma como meninos e homens veem meninas e mulheres, e como meninas e mulheres veem a si mesmas, aparece muito cedo e fica enraizada profundamente. Estereótipos —por exemplo, de garotos fortes e inteligentes e garotas sexy e submissas — são constantemente reforçados pelas mídias sociais, pela cobertura da mídia, propaganda e indústria do entretenimento. Esses preconceitos afetam o emprego das mulheres, a maneira como são tratadas no trabalho, as reações de estranhos nas ruas e até as expectativas da família em casa.
Uma das melhores maneiras de abalar normas profundamente arraigadas é mudar a pessoa que conta histórias para o cinema e televisão, o que por sua vez muda as histórias que são contadas. Shonda Rhimes, uma proeminente escritora e produtora e uma das primeiras líderes da TIME’S UP, contrata roteiristas mulheres e atoras para seus shows, apresentando mulheres trabalhadoras fortes e bem-sucedidas em papéis de liderança e cria enredos que abordam questões como assédio sexual e diferença salarial, mostrando como essas experiências sobrepostas de desigualdade no trabalho minam a oportunidade e o poder.
Na TIME’S UP, também trabalhamos para mudar a cultura, dando oportunidade a mais mulheres, incluindo mulheres negras e pessoas LGBTQ+. Quando a TIME’S UP descobriu que apenas 4% dos filmes de Hollywood eram dirigidos por mulheres, convidamos os principais nomes do entretenimento para participar do 4% Challenge, no qual concordariam em anunciar um projeto de longa-metragem com uma diretora dentro de 18 meses. Mais de 120 pessoas influentes responderam à chamada, incluindo a Amazon, a Universal e a Warner Brothers. Uma análise do Annenberg Center, da University of Southern California, mostrou que pelo menos 12 dos 100 melhores filmes terão uma diretora no próximo ano e meio — mais do que o dobro de 2018 e mais do que em qualquer ano desde o início da medida, em 1980. Uma pesquisa anterior realizada pelo centro mostrou que diretoras produzem uma representação mais completa de mulheres de diversas idades e origens raciais e étnicas, membros da comunidade LGBTQ+, pessoas com deficiência e outros grupos marginalizados.
Também analisamos outras áreas, além do entretenimento, para mudar atitudes sociais. Por exemplo, quando jogadoras de futebol da seleção feminina dos Estados Unidos aproveitaram o momento de estrelato para falar sobre salário igual e direitos das mulheres, depois de vencer seu quarto campeonato mundial em julho, iniciaram uma animada conversa nacional. Apesar de seu inegável sucesso, recebem menos do que a equipe masculina. A luta delas por paridade de salário para si e para as mulheres em todos os setores lançou nova luz sobre as chocantes disparidades entre homens e mulheres e inflamou a luta por salários iguais. A TIME’S UP e a USWNT Players Association começaram uma parceria para manter o foco na diferença salarial e indicar soluções.
Está começando a funcionar. As atitudes estão começando a mudar, e grandes mudanças nas normas culturais podem acontecer de forma relativamente rápida. Podemos tomar como exemplo a campanha estratégica e coordenada que ajudou a criar uma mudança radical no apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo nos últimos anos, que foi de uma grande maioria contrária em 2001 a uma ampla maioria que apoia em 2017.
Eliminar o assédio sexual e garantir emprego seguro, justo e digno para as mulheres em todos os locais de trabalho não será fácil, mas é hora de redobrar esforços. Se aproveitarmos esse momento, podemos reunir líderes empresariais e ativistas, produtores de cultura e formuladores de políticas públicas. Podemos prevenir o assédio sexual antes que ele comece e proteger os trabalhadores quando isso acontece. Podemos remover barreiras para que todas as mulheres sejam tratadas de maneira justa e tenham a mesma chance de ter sucesso. E podemos aumentar o poder e a influência das mulheres no local de trabalho — e em outros lugares também.
Jennifer Klein é diretora de estratégia e política da TIME’S UP. Antes, trabalhou em questões de igualdade de gênero no Departamento de Estado dos Estados Unidos durante o governo Obama e na Casa Branca durante o governo Clinton. (Divulgação: a TIME’S UP recebeu financiamento da Pivotal Ventures, organização gerida por Melinda Gates, autora do primeiro artigo deste especial.)
Fonte: HBR